O regresso da cabra-brava ao Gerês

Dezassete de Setembro de 1908. No terceiro e último dia da grande expedição em busca das últimas cabras do Gerês organizada pela "Ilustração Portuguesa", duzentos caçadores e cem acompanhantes, entre os quais se contava um grupo de cientistas convidados, regressam da serra com a certeza de que a subespécie "Cabra pyrenaica" lusitânica estava extinta. Rumores de que um ou outro exemplar de cabra-selvagem ainda vagueavam pelos alcantis escarpados do Gerês não se confirmaram.Nas décadas que se seguiram, foram várias as tentativas para reintroduzir tão cobiçado troféu. Todas resultaram infrutíferas porque Espanha não quis abrir mão da cabra ibérica, precisamente pela exclusividade que Portugal lhe havia concedido, ao perseguir até ao extermínio um recurso que não soube gerir.8 de Maio de 1971. A serra do Gerês passa a ser a parte de leão do Parque Nacional da Peneda-Gerês. O tema da reintrodução adquire outra dimensão, já que figura entre as principais motivações daqueles que nesta data conseguiam finalmente ver nascer o primeiro dia da primeira área protegida portuguesa. Com o 25 de Abril de 1974 e com a importância crescente que as questões ligadas à natureza adquirem, o ambiente vai subindo na hierarquia governamental até se tornar ministério. Sempre que confrontados com o tema da cabra, os responsáveis pelos sucessivos departamentos de conservação da natureza que no seio da tutela foram crescendo informavam do desenvolvimento de estudos que - diziam - o regresso do cada vez mais mítico animal impunha. Mais recentemente, é criado o Parque Natural da Baixa Límia-Serra do Xurês, fronteiro à Peneda-Gerês, e com ele surge o empenho galego de trazer de volta para a região as cabras, que neste momento já se reproduzem num espaço vedado muito próximo da fronteira com o nosso parque nacional. Mas em Espanha continua a subsistir quem não veja com bons olhos a libertação dos animais e o regresso ao seu antigo solar português.20 de Fevereiro de 1999. Trilho o parque nacional em busca da cada vez mais rara águia-real, dando seguimento ao trabalho de recenseamento de uma população que inacreditavelmente se abeira do fim. De repente, as silhuetas de um, depois dois, finalmente três animais, uns duzentos metros abaixo do topo da escarpa onde me encontro, fazem-me instantaneamente pensar no que não posso acreditar. O binóculo desfaz, historicamente, a dúvida. São 14h50m. A cabra-montês está de volta a Portugal! O Gerês não me parece o mesmo. Um reixelo (macho adulto), uma fêmea e uma cria pastam em liberdade no Parque Nacional da Peneda-Gerês, fugidos de um outro pequeno cercado espanhol.E agora?Temos três cabras, a situação que se manteve durante um século alterou-se e era importante que publicamente se soubesse. Portugal tem, a partir deste momento, a responsabilidade e o dever de garantir a salvaguarda dos primeiros exemplares a dar forma a um projecto de reintrodução inevitavelmente em fase de arranque. É um primeiro teste com o qual temos de provar estarmos em condições de acolher o resto do rebanho necessário à concretização de um sonho muito antigo.Estaremos à altura do desafio?Essa é a grande questão em que sempre enquadrei o tema em debate e que agora se revela incontornável. Embora reconhecendo que o regresso da cabra-montês ao parque nacional é um grandioso fim em si mesmo, é também e principalmente um meio para atingir um fim muito maior: a recuperação, o correcto ordenamento e a salvaguarda da Peneda-Gerês, património natural de excepção onde se insere o espaço vital desta espécie. Continuo a pensar que sem a execução de um conjunto de acções estratégicas, o talvez mais emblemático projecto de conservação da natureza em Portugal poderá, mais tarde, cair por terra. Se não se controlar a prática das queimadas, se não se ordenar o pastoreio, se não se avançar com um plano de reflorestação ambicioso, se não se alargarem as áreas onde a caça está interdita, se não se condicionar o trânsito motorizado em vias sensíveis e, finalmente, se não se assegurar uma vigilância efectiva nos espaços interiores da Peneda-Gerês, podemos inviabilizar definitivamente a ideia de ter cabra-selvagem de novo, o que se revelaria uma contradição insuportável no único parque nacional português.A posição dos espanhóis, que insistem na ideia da exclusividade, é insustentável numa Europa comunitária que se pretende sem fronteiras. O único argumento aceitável é o económico, quando a cabra se traduz num troféu cinegético gerador de receitas turísticas. Para o acautelar, defendo a celebração de um protocolo prévio em que Portugal assuma o compromisso de nunca permitir o exercício da caça sobre esta espécie, garantindo-se de uma só vez os interesses dos espanhóis renitentes e os interesses da conservação da natureza no parque nacional. Hoje será pacífico e consensual aceitar que a finalidade do retorno da cabra-montês é única e exclusivamente o interesse conservacionista, o restauro do equilíbrio ecológico, afectado pelo desaparecimento desta e de outras espécies. O conflito homem/lobo será minorado a longo prazo.Esperemos os meses que ainda forem necessários para que se acautelem as exigências técnicas impostas pelo regresso da lendária cabra. Esta poderá ser o embrião motivador da mudança que o parque nacional reclama e impõe, para que possa definitivamente desviar-se do rumo sem futuro que há muito lhe vêm traçando.

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