A soprano que Domingo convidou

É por ela que José Carreras se apaixona no palco da Ópera de Washington. Ou melhor, é pela personagem dela, Dolly. Ela é a soprano portuguesa Elisabete Matos, na pele da protagonista feminina de "Sly", actualmente em cena na capital americana. Um feito "raro" para uma cantora lírica portuguesa. O convite partiu de Placido Domingo.

A soprano Elisabete Matos cantou com Placido Domingo pela primeira vez em Madrid, em 1997. No ano seguinte, reencontraram-se num concerto lírico que o tenor espanhol deu no Estádio do Restelo, em Lisboa. Agora, é a convite de Placido Domingo que Elisabete Matos participa em "Sly", a mais recente produção da Ópera de Washington, em cena no Kennedy Center, até ao próximo dia 24 - é que o director artístico desta companhia norte-americana é o próprio Domingo.Elisabete Matos interpreta Dolly, o principal papel feminino da ópera (no original, "Il Dormente Risvelliato"), e contracena com o outro espanhol dos "Três Tenores", José Carreras. A ópera, escrita em 1927, é das menos representadas do italiano Wolf-Ferrari - aliás, esta foi a primeira vez que "Sly" foi encenada nos Estados Unidos. Nela se conta a história de Christopher Sly (interpretado por Carreras), um artista torturado, vítima da crueldade de um conde que concebe um plano para o humilhar. Dolly é a amante do conde, que acaba por se apaixonar por Sly. Um papel que Elisabete Matos cantou em Washington pela primeira vez no passado dia 10, e que descreveu ao PÚBLICO como "bastante difícil". A reacção da audiência de Washington foi "óptima", diz a soprano: "O público americano entrega-se muito." Quanto a José Carreras, Elisabete Matos define-o como "um bom colega e um bom músico". Já Placido Domingo, segundo conta, "impressiona a princípio, porque parece pouco acessível, mas, para além de um grande talento, é também uma óptima pessoa, muito alentador, sempre com uma palavra positiva para dizer".Apesar de não ser um nome muito conhecido do grande público em Portugal, a carreira de Elizabete Matos não surpreende quem a acompanhou. Palmira Troufa, que ensina no Conservatório do Porto, foi professora de canto da soprano quando esta estudava em Braga, e recorda-se dela como "uma aluna promissora, que tentava sempre atingir o máximo, com grandes qualidades de trabalho. Não se contentava com fazer as coisas bem, procurava atingir para lá do bem". Palmira Troufa considera Elisabete Matos "um caso raro no nosso país, onde é difícil [um cantor de ópera] sair e afirmar-se lá fora". "É tão invulgar que não me consigo lembrar de outro", diz, "só me recordo da Luísa Todi [séculos XVIII, XIX] do Francisco de Andrade [finais do século XIX] ou do Tomás Alcaide [décadas de 20 e 30]".Por sua vez, João Paulo Santos, director do coro do Teatro São Carlos, onde já trabalhou com Elisabete Matos, recorda outra carreira "igualmente grande" entre os cantores de ópera portugueses contemporâneos, a de José Fardilha, mencionando ainda outros nomes, como Jorge Vaz de Carvalho ou Carlos Guilherme. Para João Paulo Santos, a carreira internacional de Elisabete Matos é "normal para quem ultrapassa um determinado nível artístico". O pianista Nuno Vieira de Almeida, que acompanha frequentemente Elisabete Matos em recitais para canto e piano, descreve a carreira da soprano como "extraordinária, resultado de um trabalho continuado". O facto de a soprano ter feito boa parte da sua carreira em Madrid não lhe parece importante - "Isso deu-lhe uma técnica segura que também poderia ter conseguido em Portugal". No entanto, concorda que, em Portugal, o nome de Elisabete Matos ainda não é muito conhecido: "Os portugueses são os últimos a saber". João Paulo Santos acha que o desconhecimento do público português se deve, entre outros motivos, ao facto de não haver imprensa especializada na área do canto lírico. Além disso, "o mundo é muito grande, e fora os grandes nomes, que dão mais nas vistas, as coisas não passam para o público em geral". Até porque, em Portugal, "faz-se pouca ópera".Palmira Troufa descreve a voz de Elisabete Matos como "grandiosa, muito bonita, com uma grande qualidade técnica e uma potência invulgar para a característica vocal portuguesa". Nuno Vieira de Almeida fala de uma voz "belíssima, grande, servida por uma bela cabeça e por um grande talento". João Paulo Santos destaca o seu "timbre muito bonito", mas acrescenta que "o importante não é só a voz, é preciso profissionalismo, correcção em palco, ser completo e competente, e ela é-o".O "Washington Post", principal diário da capital americana, também se refere à potência da voz de Elisabete Matos no seu artigo sobre "Sly". O crítico do "Post", Tim Page, dedica a maior parte do seu texto à actuação de Carreras, mas refere que "Matos tem uma daquelas vozes de soprano à italiana, grandes e vibrantemente emotivas com uma forte sonoridade wagneriana". Page continua dizendo que a soprano portuguesa "não teve dificuldades em ser ouvida sobre a orquestra, mas a sua voz soou bastante esforçada e a sua actuação demasiado agressiva". Elisabete Matos diz, contudo, que não gosta de ler críticas antes de terminar uma produção - irá ainda cantar nas récitas de "Sly" de 19, 21 e 24 deste mês. A soprano regressa a Washington em Setembro, para interpretar "Le Cid", de Massenet, estando também a estudar uma proposta para interpretar a personagem de Donna Anna numa produção de D. Giovanni pelo Círculo Portuense de Ópera.

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