Torne-se perito

Morreu o realizador-eremita

Morreu um dos mestres do cinema, sob um manto de secretismo. Um secretismo com que Stanley Kubrick rodeou sempre todos os seus filmes e a vida. No rasto da sua morte, aos 70 anos, em Londres, deixou uma última obra, "Eyes Wide Shut" - que, em princípio, estreará no Verão. Experimentou todos os géneros, passou da fotografia para o cinema e dos EUA para Inglaterra. Para sempre ficarão obras tão emblemáticas como "2001 - Odisseia no Espaço" ou "Laranja Mecânica".

O realizador norte-americano Stanley Kubrick morreu ontem de madrugada, aos 70 anos, na sua casa de Hertfordshire, a norte de Londres. A notícia, ontem avançada pela cadeia de televisão britânica Sky News, incluía a referência a um lacónico comunicado da família, confirmando a morte e acrescentando não haver mais comentários a fazer. A polícia, por sua vez, certificou também o desaparecimento do realizador, dizendo não haver "circunstâncias suspeitas".Quem conhece a obra do cineasta e o manto de secretismo que ele fez espalhar à volta da sua vida e do seu trabalho, desde que no início da década de 60 escolheu viver na Grã-Bretanha, pode ser tentado a acreditar que esta notícia não seja mais que um dos muitos rumores que nos últimos anos corriam sobre a sua figura de eremita. Mas parece não haver razões para duvidar da veracidade de um epílogo que não se padece com ficções. Kubrick morreu. Glória à sua obra e ao seu nome.No rasto da sua morte, e para além de uma filmografia, curta de apenas uma dúzia de filmes, e poucos documentários, mas suficiente para o consagrar no ranking dos mestres do cinema, Kubrick deixou uma última obra: "Eyes Wide Shut". Deste filme, cuja rodagem foi iniciada no final de 1996 e decorreu no mais completo secretismo, sabe-se muito pouco. Apenas que é a adaptação de um livro de Arthur Schnitzler, uma história de ciúme e obsessão sexual. E cujo elenco artístico conheceu um estranho vai-vém de actores, centrado no par Tom Cruise-Nicole Kidman, um casal na vida real e que parece ter vivido no "plateau" coisas de que gostam pouco de falar - ou não estão autorizados a fazê-lo.No extenso relatório de informações dispersas, "pirateadas" aqui e ali, que é possível ler na Internet, pode recolher-se a lista de outros actores do elenco: Sydney Pollack, Jennifer Jason Leigh, Harvey Keitel... Além da informação de que a obra terá já sido acabada e que a Warner Brothers, sua produtora, prevê estreá-lo no próximo Verão. Mas sabe-se, também, que Kubrick refazia obsessivamente os seus trabalhos. E as circunstâncias que rodearam a rodagem foram, desta vez, tão escondidas que enquanto "Eyes Wide Shut" não for estreado os cinéfilos verão certamente amenizada a mágoa pelo desaparecimento de mais um monstro da história da Sétima Arte. Resta-lhes, como em muitas outras situações anteriores, saber esperar."Stanley Kubrick, é sabido, deixou a sua marca no planeta, como a de um selo em cera mole. Strauss já não põe a dançar oficiais de uniforme branco, mas faz valsar astros nimbados de azul." Esta afirmação de Pierre Giuliani, num livro que dedicou ao realizador (Ed. Livros Horizonte), refere-se, naturalmente, à sua obra mais emblemática de todas, "2001 - Odisseia no Espaço". Haverá quem prefira o visionarismo pessimista de "Laranja Mecânica", mas foi a odisseia desse grande tratado de filosofia e ficção científica que mais firmemente inscreveu o nome de Kubrick na história.Na sua filmografia, Kubrick experimentou, aliás, todos os género: o filme de guerra em "Horizontes de Glória", o histórico em "Spartacus", a comédia em "Dr. Estranhoamor", o fantástico em "Shinning", o romance em "Barry Lyndon"... E até o western, num projecto que viria a abandonar por não ter conseguido conciliar o seu feitio com o de outra prima-dona do cinema: Marlon Brando - o filme chamava-se "One Eye Jack" ("Cinco Anos Depois") e acabou por ser realizado e interpretado pelo próprio Brando.O início da carreira cinematográfica de Kubrick não fugiu à normalidade urbana. Começou pelo interesse pela fotografia, gosto que lhe foi incutido pelo pai, um médico numa família judia instalada no bairro nova-iorquino do Bronx. Foi aí que Stanley Kubrick nasceu a 26 de Julho de 1928. Frequentou o City College, de Nova Iorque, onde se mostrou um aluno mediano, mas com especial propensão para a matemática - há, inclusive, quem veja aí a base para o rigor formal e obsessivo do seu cinema. Cultivou o xadrez e o jazz, mas foi a fotografia que lhe deu o primeiro emprego, na revista "Look", a quem vendeu, com apenas 17 anos, uma fotografia de um ardina a vender o jornal que noticiava a morte de Roosevelt: rendeu cinco dólares. Com o dinheiro e a experiência do mundo ganha durante alguns anos a trabalhar como repórter, Kubrick realizou a sua primeira curta-metragem aos 21 anos: "Day of the Fight". Os trabalhos seguintes seguiram também o registo documental e de reportagem, sobre temas como a vida sindical dos marinheiros ou o quotidiano dos padres da província. As primeiras longas-metragens - "Fear and Desire" e "Killer's Kiss", que viriam a ser compradas pela RKO - fê-las com o dinheiro de parentes e amigos. Os resultados comerciais foram maus, mas a crítica começou a reter o seu nome, que o genérico dos filmes repetia em funções tão diversas como o de argumentista, produtor, "cameraman" ou montador. Kubrick começava a assumir o controlo total dos seus filmes; mas a entrada nos meandros mais complexos da indústria, obrigaram-no a associar-se a um amigo produtor, James B. Harris, com quem funda a Harris-Kubrick Pictures. Sob a chancela desta empresa, aventurou-se na realização da sua primeira longa-metragem, "Um Roubo no Hipódromo", drama passado nas corridas de cavalos, que levará a crítica a dedicar-lhe uma atenção mais continuada. Depois de dirigir "Horizontes de Glória" e "Spartacus" - ambos com a ajuda determinante de Kirk Douglas, que no caso do segundo filme o contratou para substituir Anthony Mann -, o cineasta convence o escritor Vladimir Nabokov a fazer a adaptação cinematográfica do seu romance "Lolita". O projecto chega às bocas do mundo e as "ligas dos bons costumes" não tardam a mostrar a sua indignação quanto ao carácter "imoralista" do tema. Stanley Kubrick decide que a América não é o país para o seu cinema e emigra para a Grã-Bretanha. Aí concretiza "Lolita" e dá continuidade a uma obra que finalmente atinge o reconhecimento de quase toda a gente. Ao mesmo tempo, vai-se escondendo num recolhimento que fez dele uma lenda do cinema. E quando a realidade se torna lenda, o cinema retém a lenda.

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