A que sabe um morango?

Já lhe chamaram o Béjart e o Forsythe da geração rock e rap. Já o definiram como um "coreógrafo de intervenção". Entre um rótulo e outro, o israelita Ohad Naharin diz fazer, apenas, uma dança tão difícil de definir como o sabor de um morango. O PÚBLICO conversou com ele a propósito de "Anaphase", a peça que a Batsheva Dance Company leva ao CCB, no dia 10.

A teatralidade poética e o contraste de movimentos traçam os contornos de "Anaphase", a coreografia que a israelita Batsheva Dance Company estreia na quarta-feira, às 21h30, no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa.Vinte e três bailarinos levam a palco uma obra criada em 1993 que se afasta, segundo Ohad Naharin, coreógrafo e director artístico da companhia, da tentativa de reflectir o que se passa no quotidiano, "criando outro mundo em que as regras são necessariamente diferentes".Baseando-se numa peça encomendada para o Israel Dance Festival de 1993 - "Opening Cerimony" -, "Anaphase" vive de uma cumplicidade crescente entre a música e o movimento, "entre a forma e a dinâmica, a ordem e o caos". Para Ohad Naharin, o fio condutor de "Anaphase" é o compromisso que se estabelece entre os "performers", sejam eles músicos ou bailarinos, e o público que assiste ao espectáculo. Combater a passividade da audiência é um dos desafios que considera ganhos devido, em parte, "à tensão que se vive em palco", como se a música e a dança fossem, ao mesmo tempo, aliados e adversários. "Quando o público a vê, pode contar a si mesmo muitas histórias, e todas elas verdadeiras. Basta ver e ouvir", conclui.Em "Anaphase", a colagem musical que mistura Arvo Pärt e John Zorn e a música rock (elemento a que Naharin frequentemente recorre) ao vivo são um dos aspectos fundamentais da composição e transformaram-se numa "exigência" à medida que a peça foi tomando corpo.A pesquisa de movimento - "o concorrente mais directo da música" - é a característica que Naharin mais salienta naquilo a que chama a "minha dança", por permitir "desenvolver nos bailarinos uma profunda eficiência e virtuosismo". Pressionando o elenco da companhia a ir sempre além dos "limites conhecidos", Naharin faz oscilar as suas coreografias entre o movimento frenético e a paragem quase absoluta por se sentir "atraído pela economia e pelo desperdício de energia".De uma maneira ou de outra, procura explorar a esfera do sagrado, do pornográfico ou do científico porque, tal como acontece em "Anaphase", "é necessário lidar com fronteiras pouco definidas", que dêem azo a conflitos mais ou menos preparados.Os conflitos são uma constante das suas criações. Desde que iniciou os seus estudos em dança - primeiro na Batsheva Dance Company e depois na Juillard School, em Nova Iorque - Ohad Naharin nunca afastou as suas coreografias de uma profunda consciência social e política. "Innostress", trabalho de 1983 que apresenta uma visão muito pessoal sobre a guerra que tinha afectado o Líbano no ano anterior, é disso exemplo. Apesar de afirmar que o que faz são apenas composições e "não mensagens políticas", é visto como um coreógrafo de intervenção. Concorda? "De certo modo posso concordar com tudo o que é dito a meu respeito e a respeito da minha companhia. O espectáculo está ali para o público. Se é isso que o público vê é porque, pelo menos para esse público, estava lá."A criação artística em Israel não está totalmente afastada da ordem política. Definindo o seu país como um "Estado democrático sem censura", Naharin não deixa de reconhecer que "há certos códigos que pretendem inserir-se em tudo", numa clara alusão à influência da religião no seio da estrutura política."O único problema é que não há uma separação total entre Estado e religião, o que cria uma enorme tensão entre as pessoas não religiosas." Exemplo desta tensão é a situação vivida no ano passado, quando o Estado de Israel comemorou o seu 50º aniversário. "Houve muita pressão do governo, e não só, para que alterássemos um dos quadros de 'Anaphase'. Como nos recusámos a fazê-lo, não actuámos. De certo modo, é sempre deixado ao nosso critério", explica. Fundada, em 1964, pela baronesa Batsheva de Rothchild e pela coreógrafa americana Martha Graham, a Batsheva Dance Company é hoje a mais importante companhia de dança israelita. Em 1970-72, fez a sua primeira digressão pela Europa e Estados Unidos e, dois anos mais tarde, viu Martha Graham coreografar "The Dream", a primeira peça que criou para uma companhia que não a sua. Em 1990, com a nomeação de Ohad Naharin para director artístico, a companhia tomou novo fôlego. Orgulhoso, afirma: "Mudaram os bailarinos, o reportório e a abordagem à dança. A técnica, a estética e a própria produção andam à volta do que considero ser a minha dança e os meus sentidos."Possuindo uma "companhia júnior com uma identidade definida" - o Batsheva Ensemble - dá continuidade ao projecto pedagógico de levar a público outras formas de dançar ao colaborar regularmente com coreógrafos como Jiri Kylian, Wim Vandekeybus, Angelin Preljocaj e William Forsythe. Criticando a doutrina ideológica e o militarismo, a dança de Ohad Naharin está longe de ser indiferente. Para o coreógrafo é "tão difícil de definir como o sabor de um morango", como se pudesse dar-se uma ideia mas nunca se chegasse a prová-la.

Sugerir correcção