A electrocussão por um fio

Foi debaixo de um ambiente apoteótico que os Sonic Youth se despediram pela terceira vez de Portugal. Defronte de um público rendido, ofereceram um recital eléctrico na mais pura celebração do rock. Uma espantosa noite de sexta-feira em Lisboa. Naquele que será certamente recordado como um dos concertos do ano.

Foi uma noite de pura descarga eléctrica aquela a que se assistiu na passada sexta-feira na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa. Defronte de uma plateia devota e heterogénea, os Sonic Youth apresentaram-se pela terceira vez em Portugal num concerto em que fizeram questão de deixar bem claras as razões que fazem deles uma das mais importantes bandas rock norte-americanas de sempre. Com doses acrescidas de maturação, Thurston Moore, Lee Ranaldo, Kim Gordon e Steve Shelley transportaram a sageza com que trabalham os instrumentos a níveis de todo irrepreensíveis. Ao público lisboeta foi oferecida uma noite de gala eléctrica e de triunfo nostálgico. Num tributo mágico à intemporalidade do rock.À imagem do que se havia sucedido por alturas da última edição do Festival Sudoeste, a terceira visita do quarteto nova-iorquino a Portugal decorreu no âmbito da digressão de "A Thousand Leaves", o seu último álbum. Não será pois de estranhar que a maioria dos temas em palco tivesse incidido sobre o último capítulo de uma viagem sónica que dura já há vinte anos, e da simplicidade melódica de temas como "Sunday" ou "French tickler" a trechos de cunho experimental como "Female mechanic now on duty", "Wild flower soul", "The ineffable me" e "Karen koltrane", os Sonic Youth fizeram questão de fintar a idade e celebrar a intemporalidade exclusiva das grandes canções. Nas primeiras, submergiram em oceanos de melodias pop e conduziram o rock à sua superfície mais acetinada; nas segundas, prestaram tributo ao minimalismo rude herdado das experimentações de Rhys Chatham e Glenn Branca, actualizando-o mediante estruturas musicais bem mais identificáveis. Nunca os Sonic Youth haviam estado tão próximos do registo do estúdio, subtraindo ao capítulo da improvisação o seu estatuto reinante e conduzindo a sua fórmula guitarrística a patamares cada vez mais límpidos e polidos. Mas foi fundamentalmente quando o passado trespassou as excelentes condições acústicas da Aula Magna que o síndroma da apoteose se apoderou das almas de uma plateia que enchia por completo o enorme anfiteatro lisboeta. Seguindo uma lógica de intercalagem entre o novo e o velho, os Sonic Youth produziram uma encruzilhada única de electricidade e nostalgia, em que o tempo perdeu todo o seu sentido e o rock se levantou em regime de absoluta contemplação. A multiplicidade de rostos musicais presentes em "Schizophrenia", de "Sister" (1987), o ritmo contagiante dimanado pela força de Steve Shelley em "Bull in the heather", de "Experimental Jet Set, Trash And No Star" (1994), a frescura vocal de Lee Ranaldo em "Mote", de "Goo" (1990), e o motim sónico de batalhas entre guitarras em "Teenage riot", de "Daydream Nation" (1988), constituíram motivos mais do que suficientes para que em todos se reconhecesse a alegria de uma noite ganha. Para o fim estava ainda reservado um "encore" insistentemente pedido por um público que clamava alto e bom som o regresso dos seus heróis, e ao qual os quatro responderam da melhor forma possível: fazendo-o incidir sobre um passado eterno, que ninguém ousou esquecer. A voz sôfrega de Kim Gordon sobre um horizonte de amor carnal em "Shadow of a doubt", "de "Evol" (1996), os projécteis de sensações disparados por "Kotton krown", de "Sister", e as reminescências de Lydia Lunch em "Death valley 69", de "Bad Moon Rising" (1985), remataram uma noite como há muito não se ouvia em Lisboa.Na primeira parte actuaram os No Noise Reduction, projecto de música experimental formado em 1990 por João Paulo Feliciano e Rafael Toral cuja presença em palco se deveu a uma imposição dos próprios Sonic Youth. Como Kim Gordon afirmou ao PÚBLICO horas antes do concerto, "gostamos daquilo que fazem, e mantemos uma relação assídua com ambos. Todas as primeiras partes desta digressão foram impostas por nós, e fazia todo o sentido escolhermos os No Noise Reduction para actuarem connosco em Portugal". Amigos, amigos, negócio à parte, e ao contrário das erupções brutais de energia eléctrica que os Sonic Youth emprestaram à Aula Magna, os No Noise Reduction pautaram a sua actuação por uma "performance" de improvisação electrónica em tempo real próxima da tortura e da angústia. O abuso tecnológico, o uso de equipamento para além das suas possibilidades operativas e a criação de situações tecnológicas em que certos dispositivos reagem imprevisivelmente ao serem usados constituem marcas indissociáveis da sua obra, levadas ao limite da ruptura sensorial na noite da passada sexta-feira. Uma noite que ninguém esquecerá tão cedo, naquele que será certamente recordado como um dos concertos do ano.

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