Octávio Pato, o pai do aparelho

Era uma figura determinante no PCP. Por isso, foi o líder parlamentar na Constituinte e o primeiro candidato comunista a Presidente da República. Braço-direito de Cunhal, a ele coube, por exemplo, as ligações com Moscovo e a responsabilidade pelo património e pela Região de Lisboa, no Secretariado. Ascendeu a este órgão com Fogaça e foi um dos protagonistas do Congresso das reformas krutchovianas. Recuperado para a "linha justa" de Cunhal, manteve-se fiel, até ao fim. Tanto que, quando preso pela PIDE, repetiu a atitude do líder no Tribunal. Em 1972, regressa à clandestinidade para chefiar a organização do PCP dentro do país. Desde então todo o aparelho do partido ficou por si indelevelmente marcado.

Octávio Pato faleceu ontem vítima de cancro, em Lisboa, no Hospital de Santa Maria, onde estava internado há semanas. O funeral realiza-se hoje às 15 horas no cemitério do Alto de são João. O corpo está em câmara ardente no Centro de Trabalho Vitória, sede da Organização Regional de Lisboa do PCP, da qual Pato foi responsável.Já doente e após ser operado aos plumões no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, em 1994, Pato manteve-se uma presença obrigatória nos grandes momentos do partido e esteve nos palcos durante os comícios de aniversário do PCP. Até ao fim não deixou de frequentar a Soeiro, se bem que as suas funções partidárias fossem ultimamente asseguradas no Secretariado por Domingos Abrantes (Organização Regional de Lisboa) enquanto o sector financeiro passou a ser tutelado pela Comissão de Controlo e gerido pela comissão administrativa e financeira.Não foi por acaso que coube a Pato anunciar a eleição de Carlos Carvalhas, como adjunto, em Loures, em 1990, e como secretário-geral, em Almada, em 1992. É que Pato foi um dos poucos dirigentes históricos da segunda geração que conseguiu manter durante mais de duas décadas uma enorme importância e influência junto de Álvaro Cunhal e logo no PCP. Líder que, aliás, sabia poder contar com ele para o que desse e viesse, como aconteceu durante a última mini-cisão no PCP.Olhar vigilante, sorriso matreiro, trato fácil, simpático, diplomata até, mas sempre alerta. Com um certo ar de "avozinho bem conservado", que veio adquirindo com os anos, Pato mantinha-se inabalável e concentrava em si um poder dentro do PCP dificilmente imitável.Embora não fosse um poço de ideologia, era uma fortaleza de organização e execução. Um verdadeiro "espírito conspirativo", com uma enorme capacidade de contenção e de não perder o sangue frio. Como exemplo, o ar de anedota como contava a situação por que passou numa das suas saídas clandestinas de Portugal, acompanhado de outro dirigente comunista. Uma história que deixaria qualquer mortal em pânico.A estrutura clandestina do PCP tinha infiltrados em quase todo o lado, logo também quem discretamente desviasse impressos de documentos oficias para falsificação. Com os passaportes havia a variante dos "camaradas legais" que tiravam um, davam-no à organização e participavam, depois, a sua perda às autoridades. Para prevenir qualquer encontro com a polícia em Espanha, nos ditos passaportes tinham de estar apostos os carimbos fronteiriços português e espanhol, que mudavam com alguma frequência. Ora, sempre que algum clandestino precisava de sair, lá ia um "camarada legal" comprar caramelos a Espanha. De seguida, bastava copiar os preciosos desenhos a óleo.Foi com uma destas falsificações que Pato passou a fronteira a salto. Estava já em Espanha quando percebeu que Dias Coelho cometera um pequeno engano no seu passaporte. No selo português tudo estava em ordem. Na data apareciam as letras "JAN" (Janeiro). Já no espanhol, imitado à perfeição, o mês era indicado também como "JAN" e não como "ENE" (Enero). Conclusão: regressaram a Lisboa para que o escultor comunista refizesse a falsificação.Desde há anos, Pato era no Secretariado - organismo de direcção que desde 1974 trata da vida interna do PCP - responsável por dois pelouros apetecíveis: a gestão do património e a Direcção da Organização Regional de Lisboa, a maior do partido, onde a sua influência era determinante.Por ironia da história, ascendeu a este órgão - quando ele era a cúpula da direcção clandestina - com Júlio Fogaça, em 1952, tendo sido um dos principais protagonistas do "desvio de direita". Com o pseudónimo de Melo faz uma intervenção no V Congresso, em 1957, no Estoril. O tal das reformas krutchovianas que retoma as teses de Fogaça sobre a transição pacífica para o socialismo e de aliança com outras forças de oposição a Salazar. O "informe" de Pato, intitulado "A evolução da situação política é favorável às forças da democracia e da paz", vai nesse sentido.Garante que a modificação da "correlação de forças" no pós-guerra deu "ao campo mundial do socialismo uma enorme superioridade sobre o sistema capitalista". E conclui que essas mudanças permitem "encontrar vários caminhos para os povos chegarem ao socialismo e encarrar a possibilidade de certos país chegarem ao socialismo por meios pacíficos".Era o perfilhar das teses da coexistência pacífica aprovadas, em Moscovo, na assembleia presidida por Krutchov. Pato elogia mesmo o "histórico XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, que representou um forte impulso na edificação da sociedade comunista na União Soviética e enriqueceu os tesouros do marxismo-leninismo".Depois da profissão de fé krutchoviana, avança para a situação interna e afirma que também aqui a "correlação de forças" se altera e as alianças são possíveis: "Não são somente os trabalhadores e as camadas democráticas e progressistas do nosso povo que lutam contra o salazarismo. Várias outras camadas da população portuguesa, os intelectuais, os agricultores, comerciantes e industriais, largas camadas da pequena e média burguesia e da burguesia não-monopolista que, no passado ainda recente, apoiavam o regime ou se mantinham indiferentes quanto a ele, opõem-se também à política do governo de Salazar e lutam contra ele".Anos passados, a 3 de Janeiro de 1960, com Carlos Costa, Francisco Martins Rodrigues, Francisco Miguel, Guilherme da Costa Carvalho, Jaime Serra, Joaquim Gomes, José Carlos, Pedro Soares, Rogério de Carvalho e o GNR José Alves, Álvaro Cunhal foge de Peniche. Uma das mais famosas fugas de presos políticos, em cuja organização e execução Pato participou ao lado de Pires Jorge, Dias Lourenço, Rui Perdigão e Rogério Paulo. Rapidamente se inicia a crítica ao "desvio de direita". Pato é reciclado para a "linha justa" do cunhalismo. Fiel à qual se manterá para sempre. Tanto que depois da sua libertação em 1970, ao fim de nove anos de cadeia, tornou-se num dos pilares principais da direcção-Cunhal. Mesmo depois do 25 de Abril. Ele foi o homem que assegurou a ligação com Moscovo, por exemplo, no que se refere às trocas de informações ou aos apoios financeiros dados pelo PCUS ao PCP.Paralelamente à dedicação à causa, Pato teve vida familiar, ainda que condicionada pela clandestinidade e prisão, pelo que conviveu pouco com os mais velhos dos seus cinco filhos. O primogénito, Álvaro, é filho de Antónia Monteiro. Da segunda mulher, Albina Fernandes - que viria a suicidar-se em 1970 não resistindo à pressão psicológica da vida clandestina e da cadeia -, teve Isabel e Rui. Este foram presos com os pais em 1961, tinham 6 e 2 anos e viveram com a mãe em Caxias até serem entregues aos avós paternos. Da terceira mulher, Zita Owen, teve o filho João, que nasceu logo a seguir a 25 de Abril. Actualmente, vivia com Paula Henriques, mãe de Ana.Nascido em 1925, em Vila Franca de Xira, Octávio Floriano Rodrigues Pato, começa a trabalhar aos 14 anos como operário de calçado. Ao mesmo tempo joga futebol no Vilafranquese e chega a integrar os júniores do Benfica. Acaba, porém, por trocar o desporto pela militância, por influência das suas ligações ao grupo neo-realista de Vila Franca.Adere à Federação das Juventudes Comunistas Portuguesas com 15 anos e inscreve-se no PCP no ano seguinte, em 1941. A sua carreira como "revolucionário profissional" começa cedo. Integra primeiro o Comité Local de Vila Franca e depois o Comité Regional do Baixo Alentejo. É um dos operacionais das greves de 1944. Foi, aliás, na sequência desta acção, que Pato sofre a primeira perda afectiva. O seu irmão Carlos morre, em Caxias, devido às torturas da PIDE.Em 1945, mergulha na clandestinidade e passa a controlar as organizações de juventude e estudantis do PCP. Nessa qualidade é destacado para ser o número um dos comunistas na fundação do Movimento de Unidade Democrática juvenil, em 1946, sentando-se na sua comissão central. Regressa, então, ao estado de semi-clandestinadade com o nome, verdadeiro embora parcial, de Octávio Rodrigues. É aqui que nasce a sua profunda amizade com Mário Soares, em casa de quem chegou a viver na altura e que será seu advogado frente à PIDE. Uma amizade que perdurou para sempre e que, nos tempos quentes do PREC serviu de elo de ligação entre os "inimigos" PS e PCP.Volta à clandestinidade em 1947, agora com o nome de Melo. Mantem o pelouro da juventude, mas integra também a Direcção da Organização Regional de Lisboa. Dois anos depois sobe ao Comité Central de onde não sairá mais. Passa a ter a seu cargo o "Avante!" e as tipografias clandestinas.Detido em Dezembro de 1961, foi intensamente torturado. O seu caso foi tratado pessoalmente pelo inspector São José Lopes, mais tarde, director-geral da PIDE para África. Submetido por duas vezes à tortura do sono, primeiro onze dias consecutivos, depois sete, esteve ainda 4 meses incomunicável. Não abriu a boca.Julgado em 1962, pelo Tribunal Plenário de Lisboa, imita Cunhal. No discurso de defesa assume-se como comunista e elogia o recém-eleito secretário-geral: "Tenho orgulho em ser membro do PCP, não enjeito as minhas responsabilidades e considero-me solidário com os princípios, com os objectivos e a orientação do meu partido, à frente do qual se encontra o meu camarada Álvaro Cunhal, fiel intérprete da triunfante doutrina científica do marxismo-leninismo e exemplo bem vivo do patriotismo, da honradez e da abnegação dos comunistas portugueses."Perante os juízes lembra os comunistas mortos pela PIDE (citando o seu irmão e o escultor Dias Coelho), as torturas que sofreu, a prisão da mulher e dos dois filhos. Afirma que o seu julgamento é "um atentado aos direitos de cidadania inscritos na própria Constituição [do Estado Novo] e contraria os princípios da ONU e da Declaração dos Direitos do Homem que o Governo [de Salazar] subscreveu". Classifica o regime e o executivo como "intérpretes e defensores dos interesses monopolistas" e "dos grandes latifundiários". Critica a presença de Portugal na Nato, advoga a independência das colónias e elogia a URSS como "vanguarda e baluarte".Frisa que o PCP é "uma organização política patriótica forçada a viver e a lutar clandestinamente em consequência da acção ditatorial do governo". Reafirma que "os comunistas visam, de facto, o objectivo de liquidar a exploração do homem pelo homem e edificar um sociedade sem classes, o socialismo, fase primária da sociedade comunista". E acrescenta que, "na actual fase da história, o objectivo mais imediato e urgente que se coloca aos comunistas portugueses e a todos os patriotas é o restabelecimento da liberdade e da democracia".Evacuado da sala, conheceu a sentença numa cela da Boa-Hora: 8 anos de prisão prorrogável. Foi transferido de Caxias para Peniche. Só saiu da cadeia em Novembro de 1970, sob liberdade condicional e tendo de apresentar-se periodicamente na GNR de Vila Franca.Em 1972, regressa à clandestinidade e passa a ser o único membro do Secretariado a residir em Portugal - missão herdada de Sérgio Vilarigues que se junta a Cunhal em Paris.Até ao 25 de Abril, é o dirigente máximo do PCP no interior do país e chefia o Comité Executivo. É perante Pato que, por exemplo, Jaime Serra presta contas das actividades da Acção Revolucionária Armada: quer a bomba no navio da Armada, Cunene, que estava ancorado no Tejo, quer o corte de electricidade e comunicações a uma reunião da Nato, em Oeiras.O "Avante!" é responsabilidade sua. Foi Pato que redigiu o artigo "Aliar à luta antifascista os patriotas das forças armadas", primeira página do último número clandestino, onde transparece já a orientação que levará à defesa da Aliança Povo-MFA e é a prova de que o PCP, ao seu mais alto nível, sabia o que os capitães estavam a preparar.Com José Vitoriano e Joaquim Gomes, Pato constituía o Comité Executivo quando a revolução rebentou. Morava ao pé da Avenida de França, no Porto. Na noite de 24 para 25 estavam os três reunidos na casa clandestina de Vitoriano, na Foz. Pato veio para Lisboa no carro de um "legal". Durante uns dias manteve no bolso, o BI número 2672946 e a carta de condução P-46929, passados a Manuel Fernando Saraiva Vieira, seu nome de guerra na época. O exame de condução e a carta verdadeira virão pouco depois da revolução.Assume a legalidade só a 29 de Abril ao chefiar a primeira delegação do PCP (Joaquim Gomes e Jaime Serra) que foi à Cova da Moura. Na reunião com o presidente da Junta de Salvação Nacional, general António de Spínola, exige a legalização do PCP e do "Avante!". A 30, depois de pegar Cunhal no aeroporto, regressa a Alcântara. Spínola cede. Pato vai à televisão apelar a um 1º de Maio unitário. No Congresso do Pavilhão dos Desportos, em Outubro, é reeleito para o Secretariado e para a então criada Comissão Política, órgão que integrará até 1988. Entre 1990 e 1992, acumula o Secretariado com a Comissão Central de Controlo de Quadros.Foi líder da bancada comunista na Assembleia Constituinte e deputado até 1991. Em 1976 é o candidato do PCP a Presidente da República e o único a ir às urnas, antes da experiência ser repetida por Carvalhas. A votação é que foi menos expressiva. Se o adjunto quase chegou aos 14 por cento, Pato ficou-se pelos 7,49. Mais uma prova de fidelidade a Cunhal, de quem foi um importante braço-direito. Por convicção ou para se penitenciar das suas cumplicidades de juventude com Fogaça.

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