A nova "arca" da salvação

A "Cruz do Amor" - a nova "arca" da salvação da humanidade, segundo uma vidente francesa - está cada vez mais presente em Portugal. O símbolo apocalíptico, que não é reconhecido pela hierarquia da Igreja Católica, está a ser difundido no distrito de Braga por uma comunidade ultraconservadora de Famalicão e é já visível, e criticado em surdina, em muitas paróquias.

O fenómeno da "Cruz do Amor" - símbolo cuja difusão resulta de uma suposta revelação feita a Madalena Aumont, a vidente francesa a quem Jesus terá pedido a construção de uma cruz de 738 metros (a altitude do Monte Calvário) através da qual o mundo seria salvo de "todos os seus males" - parece estar a alastrar em Portugal. Depois da polémica que se instalou em Beja com o aparecimento de pelo menos três dessas cruzes (ver PÚBLICO DE 6/2), é agora a vez de a diocese de Braga se preocupar com o assunto. São várias as de 7,38 metros de altura (a centésima parte daquela medida) já instaladas no território que administra.Aparentemente à revelia da hierarquia, alguns sacerdotes adquiriram a cruz e ofereceram-na à paróquia ou colocaram-na junto às suas residências ou até dentro de casa (neste caso, ícones com 73,8cm, a milésima parte da altitude do Monte Calvário). Em Vila Nova de Famalicão e em Guimarães, o arcebispo primaz de Braga foi mesmo obrigado a intervir. Em Guimarães, um antigo emigrante em França foi forçado a retirar a cruz que tinha colocado no quintal. Iluminada durante a noite, ela incomodava os vizinhos a ponto de não os deixar dormir. Em Famalicão, o caso mais flagrante verifica-se na paróquia de Mogege. Aqui, foi o próprio pároco que ofereceu uma "Cruz do Amor" à freguesia, instalando-a no adro da igreja. Dentro do templo, também é possível encontrar uma mais pequena. Embora não seja aprovado pela Igreja, o símbolo parece ter cada vez mais aceitação entre os fiéis. Distribuída em Portugal pela Fraternidade Missionária Cristo Jovem, com sede em Requião, Famalicão, a "Cruz do Amor" surgiu depois de uma alegada vidente francesa ter tido a "bênção" de uma visão. Apesar de a hierarquia religiosa nunca ter confirmado a aparição, Madalena Aumont garante que Jesus Cristo lhe pediu que fosse construída uma cruz de 738 metros. Na impossibilidade de construir uma cruz tão grande, a alegada vidente sugeriu o culto a várias cruzes com 7,38m ou 73,8cm. São estas que estão a ser espalhadas pelo país.Segundo dados revelados pela Fraternidade Cristo Jovem, em Setembro do ano passado eram já 54 as cruzes "azuis e brancas, brancas e azuis" em Portugal. Números que não têm em conta as de pequenas dimensões reservadas ao culto particular (cerca de 1600 já distribuídas) e que, depois de benzidas, são guardadas na casa dos crentes e até em prisões. No prospecto intitulado "A Cruz do Amor", distribuído à porta de algumas igrejas do arciprestado de Vila Nova de Famalicão, pode ler-se que a intenção é que ela chegue a "todas as famílias de Portugal e do mundo", para que "neste mundo paganizado, sem Deus, a Cruz do Amor passe a ser o centro da família". Tida, ainda segundo a mesma publicação, como a "tábua de salvação" da humanidade, a "Cruz do Amor" é apontada como a resposta de Deus ao mundo de hoje. "Uma juventude verdadeiramente destroçada, uma família desmoronada, uma escola repetidamente racionalista, uma política ateia e a própria Igreja que já não é mais directriz para os bem tristes males da mais oscilante cidade dos homens" - é assim que a Fraternidade Cristo Jovem (uma comunidade católica ultraconservadora, liderada pelo padre Milheiros, até hoje, no entanto, tolerada pela hierarquia da Igreja de Braga) classifica a sociedade actual. Para tudo isto é proposta a salvação, isto é, o culto da "Cruz do Amor", que convida a entrar na "arca" de regresso a Deus. Trata-se de uma mensagem algo catastrofista, apontada por alguns como "mais um sinal do fim do mundo". D. Jorge Ortiga, bispo auxiliar de Braga, refuta a teoria do fim do mundo e, embora explique que a Igreja diocesana terá de reflectir "numa melhor resposta para dar à situação", não esconde que toda a história à volta "das aparições e da 'Cruz do Amor'" não é mais do que "pura superstição". Se há quem acredite, não falta também quem esteja farto da cruz. Depois de Guimarães, é agora o caso de moradores das freguesias de Famalicão, onde já é possível ver o símbolo em quintais particulares. Uma devoção contra a qual, legalmente, pouco pode ser feito, mas que incomoda sobretudo os vizinhos mais próximos, já que a intensa luminosidade da cruz acaba por lhes impedir o descanso.As críticas, contudo, são feitas sem alaridos, sobretudo em conversas de café. Segundo informações recolhidas pelo PÚBLICO, alguns sacerdotes, perante as objecções levantadas por paroquianos, estão já a pedir ao paço episcopal bracarense mais informação. É que, vinda da Fraternidade Missionária Cristo Jovem, a "Cruz do Amor" acaba por perder, segundo os sacerdotes contactados, "alguma credibilidade". Localizada na freguesia famalicense de Requião, a fraternidade dispõe de instalações consideradas das melhores do país. A tipografia existente na congregação é apontada como uma das mais bem equipadas da região. Um vasto património que é visitado anualmente por milhares de pessoas de todo o país e até do estrangeiro. Regularmente, a Requião vêm "videntes" estrangeiras que, perante os crentes, explicam a forma como Deus se "revelou". É sobretudo a divulgação de "aparições" não reconhecidas pela Igreja que a hierarquia católica condena. A forma conservadora e antiquada como a Fraternidade Cristo Jovem encara o culto é também fundamento para a crítica de vários sacerdotes, que preferem manter o anonimato. "Não é aceitável que, hoje em dia, não seja permitida, por exemplo, a entrada de mulheres que usem calças nas instalações da fraternidade", disse o pároco de uma freguesia famalicense. Uma das últimas grandes cerimónias foi realizada no dia 29 de Setembro do ano passado. Com o intuito de celebrar São Miguel Arcanjo, centenas de pessoas dirigiram-se à fraternidade. Foi também nessa altura que mais foi divulgada a "Cruz do Amor" e, desde então, já se efectuaram dezenas de novas encomendas. Com pontos de venda no Porto, em Coimbra, Lisboa, Évora, Beja e Cartaxo, como é vontade dos promotores, a "Cruz do Amor" está a chegar a cada vez mais famílias.Sob o argumento de que a pessoa responsável pela instituição estava "gravemente doente", foram infrutíferos os contactos do PÚBLICO com a Fraternidade Missionária Cristo Jovem destinados a melhor esclarecer a situação.

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