O falso espelho de Maluda

Retratos, paisagens, janelas e quiosques - assim foi a obra de Maluda que, no seu estilo geometrizante inconfundível, constituiu um caso único na pintura contemporânea portuguesa. Foi também uma obra que não se pode desligar da personalidade da pintora, alheia a todos os grupos que não os dos amigos. Sempre à margem da dinâmica própria à vida artística portuguesa, Maluda foi, talvez como nenhum outro artista, uma pintora popular.

Maluda, cujo nome de baptismo era Maria de Lourdes Ribeiro, nasceu a 15 de Novembro de 1933, provavelmente em 34 (em entrevista recente afirmava ter cinquenta e poucos...). Apesar de se considerar moçambicana, nasceu em Goa, numa altura em que o pai, oficial do exército, tinha sido colocado numa comissão de serviço. Passou a infância e juventude em Lourenço Marques, actual Maputo, e só deixou Moçambique aos 30 anos, quando o seu atelier era já um dos mais apetecidos locais para a vida social. Enquanto pintava, os amigos cirandavam pela casa, de tal forma que o seu empregado, apelidado de Automóvel, apitava nas curvas para poder passar com a bandeja do whisky - segundo ela própria contava. De resto, o whisky foi sempre a sua bebida de eleição. Juntamente com o vinho tinto, era a bebida que considerava nobre.De Moçambique seguiu para Paris, onde estudou durante quatro anos, com uma bolsa da Fundação Gulbenkian. Durante esse período, José Augusto França serviu-lhe de guia pelas diversas galerias e museus de arte. Foi também onde conheceu Amália, que lhe pediu para fazer o seu retrato, como em 97 contou à "Olá! Semanário": ao dirigir-se para o hotel George V, atrasa-se no trânsito e, com a pressa, pára o carro numa zona de estacionamento proibido; um polícia vem a correr e diz-lhe para desandar mas quando sabe que Maluda vai fazer um retrato de Amália ainda fica mais preocupado do que ela.Já em Lisboa descobriu os verdadeiros motivos da sua pintura. A topografia acidentada da cidade, as formas geométricas dos telhados, as janelas, a própria paleta que marcou o seu estilo definiram aquilo a que chamava uma "síntese geometrizante", em que "os elementos da paisagem são arquétipos tratados como elementos de pintura abstracta". A cor, para Maluda, exercia "uma função rítmica" e, apesar da paixão que tinha por Moçambique (onde regressou há dois anos), dos quadros que fez no Alentejo, na Suíça ou na Baía, Lisboa tornou-se o cenário predominante do seu trabalho. Amiga da vida social, mundana q.b. e frequentadora do Botequim, quando Natália Correia liderava a tropa boémia, era no entanto "assumidamente solteira" e gozava os prazeres de uma solidão parcimoniosa na sua casa da Lapa, de onde avistava Lisboa, o Tejo e o mais que daí sobrasse. Anti-feminista, de formação super-católica mas agnóstica por escassez de fé, era uma das pintoras nacionais mais requisitadas, fosse em quadros originais ou em serigrafias. Afirmava que os seus quadros eram caros para diminuir a especulação e o oportunismo dos leilões. Pintava todos os dias, mesmo aos fins-de-semana, mas lentamente. Acreditava que um pintor inspirado era uma história do século XIX e quando terminava um quadro já havia uma lista de espera.A Maluda o dinheiro apenas servia "para acalmar os nervos". Assegurou que a manifestação burguesa mais importante da sua vida foi contratar um motorista, uma vez que o trânsito lisboeta a exasperava. Era no entanto uma excelente condutora e em Lourenço Marcos chegou a ganhar cinco taças em provas de rali. Equitação, esgrima, voleibol, basquetebol, golfe, enfim, foi uma desportista, tinha em casa uma mesa de matraquilhos, era admiradora de futebol e benfiquista por causa de Eusébio, seu conterrâneo. Também gostava de tocar viola e chegou a cantar na televisão, ora com Raul Indipwo, ora com Marco Paulo, ambos amigos. Condecorada com a Ordem do Infante por Jorge Sampaio, o seu trabalho recente mais premiado internacionalmente foi uma série de selos, que desenhou a convite dos CTT. Quiosques, faróis, a praça de touros do Campo Pequeno e a janela manuelina da casa de Garcia Resende em Évora foram os motivos. Maria João Seixas, retratada por Maluda em Moçambique quando tinha 14 anos, foi de resto quem lhe sugeriu que insistisse em quadros apenas com uma janela, depois de um dia ter visto uma tela sua em que figurava uma fachada com várias janelas. Na sua casa, tinha um falso espelho, que "reflectia" uma janela. Era só o que podia ver, quando nele se mirava.

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