As sombras de Khomeini

Vinte anos depois da Revolução Islâmica no Irão e dez anos depois da morte de Khomeini, há mulheres que choram o Imã em redor do seu túmulo. Vestidas de negro da cabeça aos pés, envoltas no "chador", vêm dos bairros mais pobres do sul da cidade para prestar homenagem aos mártires no cemitério de Teerão e para rezar no mausoléu de Khomeini. São, juntamente com os homens que as acompanham, os mais fiéis herdeiros do ayatollah. Os que há 20 anos fizeram a revolução nas ruas e hoje continuam a vivê-la como Khomeini gostaria.

Teerão são duas cidades. Nos bairros ricos do norte, as mulheres passeiam-se pelas ruas maquilhadas, com lenços coloridos, descaídos para trás e a deixar ver uma generosa madeixa de cabelos. Há namorados de mão dada a ver montras. Há grupos de jovens a conversar animadamente. Quando se começa a descer para sul, a cidade começa a mudar. São cada vez mais as mulheres com o "chador" a transformá-las em sombras negras esvoaçantes. Os bairros são nitidamente mais pobres, as regras islâmicas ditadas pelos "mullahs" são aqui, sem dúvida, mais respeitadas. E quanto mais a sul, maior é o número de sombras negras que nos rodeia.O pavilhão, algures no meio do gigantesco cemitério Behest-e Zahra de Teerão, é já um mar de sombras negras sentadas no chão. Está prestes a iniciar-se uma das centenas de cerimónias com que, de 1 a 11 de Fevereiro, as autoridades iranianas comemoram os 20 anos da Revolução Islâmica. No meio da sala, uma divisória separa homens e mulheres. Do lado das mulheres há, à entrada, um rápido controlo das malas, até que a presença de uma jornalista estrangeira vem provocar alguma agitação. Afinal, tratava-se apenas de uma mecha de cabelo demasiado à vista debaixo do lenço e, depois de superado esse obstáculo, a porta abre-se sem problemas.As mulheres encolhem-se no chão para dar lugar às que continuam a chegar. No palco uma rapariga lê um texto. Dos homens vêem-se apenas, por debaixo da divisória, os sapatos abandonados (é preciso tirá-los para andar sobre os tapetes), e chegam os "uhhhhhs!" no fim de cada discurso ou leitura do Corão. No entanto, do lado das mulheres há um grupo de rapazes com instrumentos musicais e alguns operadores de câmaras de televisão, o que, aparentemente, não representa qualquer problema. A cerimónia prossegue com "slogans" a serem gritados em conjunto pela multidão. Grupos de mulheres levantam-se e deixam a sala, numa pequena onda, para darem lugar a outras. Algumas afastam-se para ver a exposição dedicada aos mártires da guerra com o Iraque - a quem é dedicada toda a celebração. Várias vitrinas mostram objectos pessoais que pertenciam aos soldados caídos em combate contra o Exército de Saddam Hussein: uma mochila com as cores da bandeira francesa, um tubo de pasta de dentes meio gasto e a respectiva escova, umas chaves, um relógio, um par de óculos, uma régua "made in" Checoslováquia, uma luva, um velho gorro de pele, um exemplar do Irão. Depois as fotos do soldado, primeiro vivo, com os amigos, às vezes em fotografias tipo passe de velhos cartões de estudante, e depois, mesmo ao lado, já morto, caído numa cova de terra. O culto do martírio, tão caro aos xiitas (o ramo do Islão a que pertence a esmagadora maioria dos iranianos), leva-os a multiplicar estas fotografias, algumas muito ampliadas, de rostos de mortos, o cabelo empapado em sangue, a pele muito branca, os olhos entreabertos, uma mão que vem de fora do enquadramento a afastar o plástico que envolve o cadáver para lhe descobrir melhor a cara. Há também foto-montagens que mostram o mártir em primeiro plano, tendo ao fundo o céu, o mar ou o campo de batalha. Há fotos das trincheiras, de corpos caídos, retorcidos por cima das armas. Há até uma pequena tapeçaria inacabada com a foto de um soldado presa entre as linhas do tear. Mais à frente, uma vitrina é dedicada às mulheres que morreram há alguns anos numa peregrinação a Meca, sob as balas dos soldados. Mais uma vez há relógios, há cartões com as fotografias manchadas de sangue seco, há um par de óculos partidos.Este é o verdadeiro Irão da República Islâmica, onde as ideias e os valores que o Ayatollah Khomeini trouxe com ele do exílio, em 1979, fazem todo o sentido. Este é o Irão das classes mais pobres, que há 20 anos saíram em peso para as ruas para receber o Imã, que celebraram euforicamente o fim do reinado do Xá Reza Pahlavi, com toda a sua ocidentalização, a sua riqueza excessiva vinda de um petróleo excessivamente caro, a sua corrupção, a gigantesca influência dos Estados Unidos, as suas discotecas, as suas mini-saias, as suas festas, o seu esbanjamento, a sua embriaguez.Com o apoio dos ricos comerciantes do Bazar de Teerão, e de forças políticas de quadrantes diferentes mas todas anti-Xá, Khomeini aterrou na capital e, em dez dias, instaurou no Irão uma República Islâmica.Durante os dez anos que se seguiram, Khomeini foi Guia da Revolução, a força espiritual por detrás de tudo, a referência máxima. Morreu em 1989. Hoje repousa num enorme mausoléu, mesmo ao lado do cemitério de Behest-e Zahra. O seu túmulo está, juntamente com o do seu filho que morreu poucos anos depois do pai, no interior de um rectângulo de vidro protegido por um gradeamento metálico e debaixo de um candelabro que reflecte dezenas de luzinhas para o interior da cúpula. Dois dos lados deste rectângulo são reservados aos homens e os outros dois às mulheres, que se empurram para tocar com a mão numa das paredes ou deixar um cravo entalado entre as grades. Algumas encostam a cabeça e beijam o gradeamento, e, por vezes, de debaixo do "chador" sai um choro abafado. É o mesmo mar negro e ondulante que celebrava os mártires no cemitério e cujas ondas se espalham pelo sul da capital.No resto da mesquita o ambiente é descontraído, há grupos de homens a conversar espalhados pela enorme sala cujas colunas estão enfeitadas com colares de lâmpadas verdes e vermelhas e faixas com flores pintadas. As crianças correm por todo o lado, brincam, e os seus gritos sobrepôem-se ao ruído abafado das conversas das mulheres que, sentadas no chão de mármore aquecido, comem pão e fruta.Cá fora, um enorme retrato do Imã com o seu turbante negro e o seu olhar eternamente severo, olha para as pessoas que se agitam à sua volta, que entram e saem do mausoléu. Se o mesmo olhar não estivesse reproduzido em enormes pinturas por toda a cidade, se Khomeini pudesse olhar o Irão apenas a partir deste retrato à entrada do seu mausoléu, sentir-se-ia certamente feliz. Estes são os homens e as mulheres que hoje mantêm a Revolução iniciada precisamente há 20 anos quando, acabado de aterrar no aeroporto de Teerão, o Ayatollah pediu para ser levado imediatamente até ao cemitério de Behest-e Zahra, para prestar homenagem aos mártires assassinados meses antes pelos soldados do Xá. Nesse histórico dia 1 de Fevereiro de 1979, Khomeini sentou-se numa cadeira junto da secção 17 do cemitério e a sua voz grave ecoou através do altifalante para a multidão que se esmagava em seu redor. "Vivi muitas dificuldades e vi muita dor. Não sei como agradecer a essas nobres pessoas que sacrificaram tudo pela sua Revolução".

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