Um honesto "Rigoletto"

"La donna e mobile" volta ao Coliseu dos Recreios. Mas o regresso do "Rigoletto", de Verdi, à sala lisboeta com riquíssimas memórias operáticas não é, para já, nada de constante. As comparações com que passa no S. Carlos tornam-se incontornáveis: óperas para o grande público ou para uma pequena elite; qualidade das produções versus rentabilidade. É uma polémica viva e apaixonante. Como o drama do "Rigolleto".

O "Rigoletto" que agora nos traz o Coliseu é uns furos acima do que tem sido normal nas óperas importadas do Leste, apesar de a companhia anunciada com o pomposo nome de "Opera Nazionale italiana" ser afinal uma formação "ad hoc", essencialmente toda da Ópera Nacional de Maribor, na Eslovénia! É mais um caso de publicidade enganosa, à ternurenta maneira do Coliseu renovado; mas tranquilizem-se, desta vez a qualidade é bastante decente. Vozes no geral boas, uma produção convencional mas honesta, coro e orquestra com mérito, foram uma surpresa agradável, compensando a direcção musical com pouca verve e a fraca encenação.Os cenários e figurinos, embora prejudicados por uma péssima iluminação, são os do "Rigoletto" mais retinto que é possível imaginar: uma daquelas produções que se usariam numa cena de filme passada durante uma récita da ópera de Verdi. Só um pormenor fugia ao arquétipo: o famoso corcunda e bobo da corte era aqui mais alto que o Duque de Mântua - e não coxeava! Até sabe bem ver que estas coisas ainda existem; como se fossem sobrevivências de outra época cultural, à boa maneira da antropologia vitoriana de Edward Tylor. E cumprem uma saudável função: ópera popular, sem pretensões; música empolgante numa história bem contada. Infelizmente, neste caso os preços não são populares: são quase os mesmos do São Carlos, e sem descontos, o que torna ousado fazer sete récitas. Na primeira havia apenas dois terços da sala, com uma assistência mais emplumada que a da antiga geral do Coliseu.Mas já nos tínhamos esquecido: a democracia de sucesso matou a ópera popular em Portugal. E o pior é que a chamada Terceira Via ainda não deu sinais de se ralar com isso. Espectáculos como este, podíamos tê-los com uma companhia portuguesa, talvez melhores, certamente mais interessantes do ponto de vista teatral. Deviam aliás ser moeda corrente, com digressões pelo resto do país.Nesta produção, embora haja dois elencos para os papéis principais, não nos informam dos dias em que actua um e outro. Mas aqui ficam as impressões do que actuou na estreia. Sobressaiu a Gilda do soprano Irina Veznjevec (inicialmente não anunciada), uma voz bonita e pura, tecnicamente perfeita, que se abalançou sem esforço e com delicadeza aos apaixonados malabarismos do papel. O barítono Giorgio Lormi como Rigoletto mostrou gabarito, apesar de uma cor por vezes baça (talvez por estar constipado, como sugeria o seu gesto constante de levar a mão ao nariz); os duetos entre pai e filha, assim como o arrepiante "Cortigiani, vil razza dannata", foram pontos altos da noite. O tenor Andrea Elena, apesar da bela voz de italianas ressonâncias, mostrou um fraseio um pouco hirto e certos deslizes na afinação (ficou meio-tom abaixo da orquestra no dueto da 2ª cena, arrastando a pobre Gilda consigo). Dos restantes, sobressaiu o esplêndido contralto Daniela Pini como Maddalena, uma voz arrebatada e pastosa que contribuiu para a eficácia do famoso quarteto elogiado por Victor Hugo. Referência ainda aos escorreitos Monterone de Ivica Saric, Sparafucile de Franc Javornik e Marullo de Jaki Jurgec.A afinação e um certo "panache" do coro masculino da ópera de Malibor, ensaiado por Robert Mracsek, foram um bónus inesperado para este tipo de produção. A orquestra da mesma companhia, com bons meios, só não teve todo o fulgor que podia porque o maestro Stefano Pellegrino Amato não captou o vigor verdiano da partitura; houve da sua parte uma certa lassidão nos tempos e falta de iniciativa, sem contudo pôr em causa a correcção e o profissionalismo do espectáculo.Se o outro elenco confirmar a mesma bitola, este é um "Rigoletto" que, sem ser extraordinário, merece a pena ser visto.P.S. Quase pior do que a acústica indigente do recinto foram as aterradoras tosses da assistência. Trovoadas de catarro que varreram a sala do primeiro ao último acto. Ou há um grave problema de saúde pública em Portugal, ou as pessoas perderam aquele mínimo de consideração pelo trabalho dos artistas. Será que tem que passar a haver inspecções médicas à entrada dos espectáculos? Bastavam lenços para abafar o ruído.

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