O gracioso foi sempre o Jorge

É preciso ter-se uma certa idade para se recordar Jorge Silva Melo quando actor. Nos longínquos anos 60, quem tinha 20 anos está agora na casa dos 50 e foi com espanto que o viu pela primeira vez no Teatro Vasco Santana (Lisboa, Feira Popular), em 1969, ano de eleições e de aparente consolidação de Marcelo Caetano no poder.O Grupo de Teatro da Faculdade de Letras - com as superdotadas Eduarda Dionísio e Ermelinda Duarte e os geniais Jorge Silva Melo e Luís Miguel Cintra - apareceu então como um sinal de esperança que, até hoje, não foi desmentida. Nem pelo "Anfitrião", de António José da Silva que o público devorou com os olhos e os ouvidos. Nem com os "Entremeses" de Cervantes, logo no ano seguinte, com o Grupo de Teatro do Ateneu Cooperativo, em que os mesmos actores, na Sociedade Nacional de Belas Artes, recriavam três "Entremeses" burlescos. Num e noutro espectáculo, enquanto representavam ou viam representar, os actores e os espectadores aprendiam velozmente o que era um gracioso (e o gracioso era sempre o Jorge), o que era a comédia dell'arte, o que era o teatro cómico, o que era o teatro popular. Com a partida de Jorge Silva Melo e Luís Miguel Cintra para o estrangeiro - o primeiro para estudar cinema, o segundo para estudar teatro - dispersámos, contrariados, mas certos de que eles voltariam. Voltaram em 1973, fundaram o Teatro da Cornucópia, fizeram o primeiro espectáculo no hoje desmantelado Teatro Laura Alves: "O Misantropo" de Molière, encenação de Luís Miguel Cintra, com Jorge no papel burlesco de Oronte.Eram horas de pôr em movimento o chamado Teatro Independente. A grande paixão da Cornucópia - vinha no programa - era criar e formar um público jovem. Mas, para a estreia de "A Ilha dos Escravos", de Marivaux, com encenação de Jorge Silva Melo, o grupo teve de encontrar um novo espaço, no Capitólio (Parque Mayer), escassas semanas antes do 25 de Abril de 1974. Com a revolução, inesperada, o grupo renuncia a Marivaux e volta-se para Bertold Brecht: "O Terror e a Miséria no III Reich" acabou por estrear fora de Lisboa, na Incrível Almadense. É a segunda encenação de Jorge Silva Melo.O actual Teatro do Bairro Alto abre em 75 com "Pequenos Burgueses", de Gorki, e é o princípio (adivinha-se) dum ciclo que vai culminar em "Tambores na Noite", de Brecht, nova encenação de Jorge Silva Melo. A que se segue outra encenação dele: "Alta Áustria", de Franz-Xaver Kroetz, teatro do quotidiano.Entretanto, a Cornucópia atingiu alguns dos pontos mais altos da sua história: "Ah Q" (1976), onde Jorge Silva Melo encarna toda a locura do mundo, "Casimiro e Carolina" (1977), que tem a tripla assinatura de Luís Miguel Cintra, Jorge Silva Melo e Cristina Reis, "Woyzeck" (1978) e "E não se pode exterminá-lo?" (1979).À primeira vista, a harmonia era total dentro do grupo. Mas, para surpresa geral, depois deste último espectáculo, Jorge Silva Melo fugiu de novo para a Europa, trabalhando como actor em Paris ("Les Sonnets", de Shakespeare, encenado por Jean Jourdheuil) e Berlim.Quando regressa, nos anos 90, é para pôr de pé um projecto novo e com uma dinâmica infernal. Animando "ateliers" que congregam dezenas de actores novos, apresenta-se como autor/encenador e coloca-se no centro duma actividade imparável, que acaba por atrair o público jovem, dando origem a espectáculos tão inovadores e tão perto do quotidiano como "António, um Rapaz de Lisboa", "O Fim ou Tende Misericórdia de Nós", "Prometeu" (que passa por várias versões), "A Tragédia de Coriolano". Fundou, para isso, os Artistas Unidos, em 96, e, a partir de 97, começou a tomar posições anti-encenador, ao mesmo tempo que decidia voltar a representar. Vinte anos depois de "E não se Pode Exterminá-lo", Jorge Silva Melo volta a pisar o palco e vai outra vez ao encontro de Brecht: "Na Selva das Cidades" é um espectáculo sem encenador, mas com um grande actor. Ao mesmo tempo, faz cinema, embora nunca apareça no ecrã. É muito parecido com Woody Allen e não quer ser confundido com ele.

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