Hermínio Martins e o Portugal contemporâneo

Hermínio Martins, sociólogo português há muitos anos expatriado, publicou finalmente em livro os seus primeiros ensaios sobre o Portugal do século XX. Abrindo uma nova colecção do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, "Classes, Status e Poder, e Outros Ensaios sobre o Portugal Contemporâneo" reúne quatro artigos escritos originalmente em inglês, um dos quais nunca publicado. Trata-se, sem demérito para outros cientistas sociais da mesma geração, do que de melhor se escreveu sobre o tema nos anos 60, assegurando ao autor um lugar cativo na historiografia e na sociologia portuguesas.Conhecido sobretudo pelos seus trabalhos de teoria das ciências sociais e de sociologia da ciência, Hermínio Martins só ocasionalmente se dedicou à realidade portuguesa e quase sempre a convite de académicos internacionais. Doutorado pela London School of Economics, com uma tese orientada por Ernst Gellner, este cientista social português ensinou nos EUA e em várias universidades inglesas, até se fixar como Fellow do S. Antony's College da Universidade de Oxford.O primeiro capítulo deste livro reproduz o ensaio sobre o Estado Novo, escrito para o livro "European Fascism", publicado por Stuart J. Woolf em 1968, e o único traduzido para português há alguns anos (Meridiano, 1978). Trata-se de um dos artigos mais citados sobre o tema do fascismo em Portugal e muitas das pistas que abriu foram felizmente retomadas pela historiografia portuguesa nos anos 80. Já o mesmo não se poderá dizer do ensaio sobre a crise da I República, escrito para um projecto sobre a crise da democracia no período entre as duas guerras, dirigido pelos politólogos Juan J. Linz e Alfred Stepan, e que ficaria inédito, muito embora tenha circulado como comunicação. Nele encontramos a primeira abordagem não finalista da curta experiência republicana liberal e foi pena que este ensaio verdadeiramente pioneiro não tivesse uma difusão mais alargada em Portugal, pelo papel inspirador que só tardiamente desempenhou. Um outro ensaio é dedicado ao tema da oposição ao salazarismo, suas famílias e mutações. Escrito em plena primavera caetanista para uma revista académica inglesa, ele mantém ainda hoje um rigor tipológico que não foi retomado pela investigação mais recente, para além da tentativa de caracterização da repressão do Estado Novo, sublinhando o seu "elevado grau de racionalidade política nesta esfera", preferindo sempre um "'óptimo de terror' e não um cru 'máximo de terror'" (pág. 68). De assinalar também, muito embora não tivesse sido o seu objectivo, alguma capacidade de previsão sobre os actores da queda do regime, quando o autor sublinhava que de entre os "três Estados" representados nas Forças Armadas, na Igreja e na oligarquia empresarial sob o salazarismo, apenas as primeiras eram susceptíveis "de traduzir em mudanças reais na estrutura do poder o veredicto virtual da 'opinião pública'" (pág. 58). "Classes, Status e Poder em Portugal", o ensaio que dá o título ao livro, foi escrito para uma obra colectiva coordenada pelos sociólogos Margaret Archer e Salvador Giner e representa talvez o mais rico e marcante artigo sobre a estrutura social, sua mudança e relação com o poder político sob o salazarismo. Passados quase 30 anos, o que mais espanta desde logo neste ensaios é a sua assinalável resistência ao tempo. Eles são símbolo da enorme distância entre o que se escrevia nessa altura em Portugal e o que era produzido internacionalmente, e ainda da lentidão com que o défice foi sendo colmatado após a institucionalização da democracia. Convido pois o leitor a um exercício de memória e comparação com o que era escrito sobre o tema, mesmo no exílio, na mesma época. Exemplo de uma investigação empírica com um acesso extremamente limitado às fontes, estes artigos, mesmo considerando essa limitação, são modelares na manipulação de uma grande cultura em ciências sociais e perspicácia analítica. Existem nestes ensaios de Hermínio Martins algumas características que gostaria de destacar e a primeira é desde logo a dimensão comparativa. A análise da mudança social e política portuguesa não é dominada pela obsessão "nacional", espécie de "fenómeno do entroncamento" intuitivo, que continuou a marcar, até há pouco tempo, muita investigação sobre alguns dos temas deste livro. Uma outra dimensão importante é a da magnífica dissolução de conceitos da história, da ciência política e da sociologia na narrativa, sem teoricismos estéreis.Mas esta obra impõe ainda uma reflexão final sobre o estatuto destes ensaios e o seu papel na introdução de Portugal, da sua cultura e da sua história, no quadro da investigação internacional. Qualquer simples consulta a instrumentos estatísticos internacionais prova que, durante quase 20 anos, alguns destes ensaios foram os mais lidos e citados a propósito do século XX português, o que, sendo prova de bom gosto intelectual, foi também símbolo do atraso das ciências sociais nacionais, muito para além do que o legado do salazarismo poderia explicar ou desculpar. Por outro lado, ele remete também para a escassa presença de uma diáspora académica portuguesa, não tanto em termos numéricos, mas sobretudo de presença efectiva, do qual Hermínio Martins é uma das honrosas excepções. Se olharmos para trás e para o lado, esta quase ausência não é fácil de explicar e mereceria mais atenção, mesmo sem tentações finalistas de "julgar" algumas gerações de intelectuais portugueses. Nos últimos anos, Hermínio Martins tem ocasionalmente voltado ao estudo da realidade portuguesa, em ensaios sobre o federalismo no pensamento político, ou sobre as mudanças de regime no século XX (vide "Penélope", nº 18, 1998). Esperemos que este livro seja o pretexto e incentivo para os continuar.

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