O cantor pop atacado pelo pólen

Apesar de inspirado nas canções que anteontem apresentou no Hard Club, Neil Hannon, dos Divine Comedy, não conseguiu dar-lhes um suporte vocal condigno. Invocando uma dor de garganta, o irlandês remeteu-se a um registo precário. Em compensação, a banda rock que o acompanhou esteve à altura do desafio, não tendo o dramatismo orquestral da música perdido com a mudança.

Há uma canção dos Divine Comedy que, além de exaltar as delícias da Primavera e dos sorrisos ensolarados, descreve em tom jocoso as agruras de um cantor pop perseguido pela sua alergia ao pólen e às voltas com um cortejo de espirros e dores de cabeça. Pois bem, esta divertida ficção transformou-se em incómoda realidade. Anteontem à noite alguns grãos de pólen devem ter andado a pairar sorrateiramente e fora de época na sala do Hard Club. A estação das flores ainda vem longe mas Neil Hannon sentiu-a já em cheio na garganta. Durante o espectáculo, o mestre dos Divine Comedy tentou até ensaiar um gargarejo mas não houve remédio que almejasse retirá-lo da condição de cantor de charme engripado, uma espécie de Sinatra mal curado de uma constipação. Ocorrência tanto mais irónica quanto surge no rescaldo de um álbum, "Fin de Siècle", em que o trabalho vocal do talentoso irlandês atingiu uma agudeza e sofisticação sem precedentes. Neil Hannon fez sua uma expressividade digna dos melhores "crooners" e conseguiu que uma larga paleta de sentimentos lhe aflorasse na voz. Anteontem, porém, apesar de a competência e sensibilidade se terem mostrado intactas, o combustível em crise não o deixou ir muito longe. No final, o cantor debilitado chegou mesmo a desculpar-se, prometendo um reencontro para quando tivesse a "voz melhor". O público teve, pois, de se contentar com um único "encore" e o tão requisitado "Sunrise" (um dos dois temas do último álbum que ficaram por interpretar), em que a voz de Hannon acede aos pináculos mais agudos, acabou por ficar engavetado, provavelmente por razões de segurança. Dessas mazelas não se queixou, felizmente, a vocalista dos Gift, a banda de Alcobaça a quem competiu fazer a primeira parte dos Divine Comedy. A cantora, com a sua toada grave e dramática, demonstrou em palco ser um dos principais trunfos de um grupo, que terá soado como uma revelação surpreendente para quem esperava aproveitar a primeira parte para tomar distraidamente um copo. Entre revoadas de cadências orgânicas à Red Snapper, uma veia melódica nocturna e intimista na esteira de uns Portishead e a abertura às ocasionais acelerações dos "breakbeats", a amostra foi suficiente para se perceber que esta banda é mesmo uma bela "prenda". Se fossem oriundos de Bristol, provavelmente eram já a "next big thing" dos fazedores de opinião britânicos... Se as palmas foram simpáticas e merecidas para os Gift, ferveram já de excitação à entrada em cena dos Divine Comedy. Que foi, refira-se, das mais improváveis, ou não fosse Neil Hannon um "dandy" inveterado que faz da ironia uma forma de arte. Ainda com as luzes apagadas, soou um "sample" de um dos temas mais conhecidos dos Prodigy que, ao acender dos holofotes, se converteu de imediato na batida "disco" de "Europop". À boca de cena, Neil Hannon, engravatado e enfarpelado como um seminarista recém-chegado dos claustros de Cambridge, meneava-se com uma lentidão sarcástica, enquanto ia entoando em estilo "fake" os primeiros e sensuais versos da canção. "Que voz tão grave e sexy tenho eu esta noite!", comentava Hannon, que na ocasião inventou, com o maior dos "fair-plays" britânicos, o registo vocal "febre-dos-fenos": uma oitava abaixo do que era normal, explorando habilmente a espessura conferida pela dor de garganta. Como é óbvio, os resultados do expediente foram dúbios. No solene "Life on earth", por exemplo, o neo-Hannon de voz grave e contida adaptou-se com êxito àquela melodia larga e envolvente sem qualquer perda de dramatismo. Em "Certainty of chance", um dos mais sublimes crescendos interpretativos jamais construídos pelo artista irlandês, o cantor chegou a sentar-se na beira do palco apertando depois algumas mãos ávidas com meia dúzia de serenos "how do you do's"; mergulhado no seu discreto canto, voltou para trás de cabeça baixa numa incompreensível desconformidade com a progressão épica da melodia. Já no festivo "Generation sex", cuja melodia "vintage" saltita pela escala num desafio à agilidade do intérprete, o resultado esteve próximo do descalabro. A veia satírica do texto talvez não tenha ficado a perder com o estilo de "canto falado" por que Hannon optou, sendo altamente duvidoso, porém, que a melodia tenha sobrevivido para contar a estória. Os músicos, esses, estiveram irrepreensíveis, demonstrando uma consistência à prova de catarro. E sobretudo conseguiram uma proeza digna dos maiores encómios: fizeram esquecer as virtudes do contexto orquestral das versões originais, garantindo num formato mais dentro dos cânones tradicionais do pop-rock que praticamente nada se perdesse em envolvência dramática e poderio sentimental. A este propósito, foi exemplar a leitura de "Sweden", com as percussões e guitarras a ribombarem numa harmonia quase sinfónica. Discutível foi apenas o enquadramento com que surgiu "Death of a supernaturalist", originariamente uma pérola de pop barroca orquestrada a cordas clássicas, mas que no Hard Club foi espartilhada por uma secção rítmica pouco imaginativa. Em suma, a "comédia" continua "divina" nas suas canções mas há que aguardar por um Neil Hannon finalmente curado do pólen...

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