As vozes da América profunda

Quais os dez discos que me fizeram gostar de música popular anglo-saxónica e escrever sobre ela? Quais os que mais me marcaram durante estes anos todos. A pergunta fez-me empilhar de forma algo desordenada dezenas de velhos LP e CD, alguns dos quais permaneciam no mesmo sítio há vários anos. No fim de os empilhar, apercebi-me que podia considerar várias categorias: os discos que me haviam marcado podiam dividir-se nos que me tinham marcado mas já não me eram vitais e os outros aqueles que eu ouvirei sempre, aqueles que já ouvi horas e horas a fio e continuarei a ouvir.

Para concluir a lista de dez discos mais marcantes, eliminei um rol interminável de obras-primas e outras nem por isso: "No Nukes" (79), Randy Newman - "Trouble in Paradise" (83), Richard and Linda Thompson - "Shut out the light" (82), Joy Division - "Closer", "Songs in the attic" de Billy Joel (81), o primeiro dos The Doors, "L.A. Woman", o primeiro dos Dire Straits, o primeiro dos U2, "Harvest" de Neil Young, "Late for the sky" de Jackson Browne, "Nightwaks at the dinner" de Tom Waits, "Blonde on Blonde", de Bob Dylan, o primeiro dos Pretenders, "Out of time" e "automatic for the people" dos REM, "Infamous Angel" de Iris De Ment, "Horses" de Patti Smith, além de outros discos de Bonnie Raitt, Lucinda Williams, Mary-Capin Carpenter, Robert Earl Keen, Bob Woodruff, Steve Earle, Alan Jackson, John Prine, Jimmy La Fave, Alan Jackson, Patsi Cline, Loretta Lynn...Depois de resolvida de forma ditatorial a primeira questão, havia que eleger o som mais marcante. É um facto que hoje ouço um pouco de tudo, desde axê da bahia ao cajun e zydeco da Luisiana passando por Compay Segundo. Sou capaz de numa noite ouvir um disco de forró para passar a seguir para uma onda diferente, colocando "Jump" dos Van Halen, Aerosmith ou o último álbum ao vivo dos Lynyrd Skynyrd. Desta mescla, qual foi o som que sempre mais me marcou? Neste dilema solitário, cheguei à conclusão que só duas ou três personalidades mereciam ser eleitas: a primeira, meu herói e farol há 20 anos, chama-se Bruce Springsteen. As duas outras, descobertas mais recentes mas hoje pilares fundamentais da minha "cultura" musical, são Hank Williams e Willie Nelson. A influência quase espiritual da obra do Boss na minha existência tem sido tão asfixiante que, para ser sincero, nos dez discos que mais me marcaram teria de colocar "Darkness on the edge of town", aquele que primeiro conheci, "Born To Run", "Nebraska" e "The River". Optei por escolher só "The River", o disco que tantas vezes nas longas noites de Inverno dos anos de 81 e 82 rodou no meu gira-discos. Imitava as poses do Boss a ouvir "Ties That Bind", com uma guitarra imaginária a tiracolo e saltava do sofá para o chão quando se iniciava o som festivo e demoníaco de "Ramrod", imaginando que o sofá era o piano e o chão do quarto o palco. Depois, escorregava como vira o Boss fazer no filme "No Nukes". Mas se há tema que está marcado em brasa algures aqui dentro, é "The River", a consumação da minha paixão pelo som de Bruce, pela temática da "working class", pelos deserdados: "no wedding day smiles, no walk down the aisle, no flowers, no wedding dress" ou "now I just act like I don't remember, Mary acts like she don't care".Mais ou menos na mesma época, saía o segundo álbum ao vivo de Bob Seger, "Nine Tonight". Na época achava Seger o sucedâneo medíocre de Detroit do Boss mas, ao longo dos anos, aprendi a ouvir as mesmas canções dezenas e dezenas de vezes, de tal forma que ainda hoje a minha espinha se arrepia ao escutar o intro de saxofone de "Mainstreet" e Seger cantando: "I remember standing on the corner at midnight/ trying to get my courage out." Ainda hoje a letra de "Old time rock and roll" me assenta como uma luva e parece dedicada a todos os resistentes da discoteca 2001: "Don't try to take me to a Disco/ we never even get me out on the floor (...) I like that old time rockn'roll!" Continuo a achar "We've got tonight" uma das mais belas baladas de amor que já ouvi e corava de vergonha sempre que ouvia a versão insuportável de Sheena Easton e Kenny Rogers. E, por fim, quem não gostar do intro fabuloso de "Night Moves", simplesmente não sabe o que é rock'n'roll.Os Rolling Stones foram sempre presença assídua do meu prato de gira-discos nos anos 80, mas um álbum em especial rodou tanto até ficar riscado. De "Love you live", um LP duplo, eu devorava o lado 4, tremendo ao primeiro "All right" de Mick Jagger e ao ouvir os primeiros acordes diabólicos de Keith Richards em "It's only rock'n roll". A desbunda começava aí, continuava com "Brown Sugar" e "Jumping Jack Flash" e culminava nessa grande apoteose que se chama "Sympathy for the devil".Gostar de rock'n roll no início dos anos 80 significava ouvir outro rocker de peso: Tom Petty and The Heartbreakers. Nunca ele me soou tão juvenil e sem borbulhas como em "Damn the Torpedoes" (79). Ouvi "Refugee" dezenas de vezes e cansei-me de cantar o refrão de "Don't do me like that" mas a minha canção foi sempre "Louisiana Rain", como mais tarde seria "Southern Accent".No meio das minhas audições de puro rock'n'roll, passei a ouvir o programa radiofónico "Música na América" de Jaime Fernandes. Dessa época, recordo o deslumbramento com o meu primeiro LP de Emmylou Harris, "Elite Hotel" (75) que começava a sedução logo nas capas, que permitiam sonhar com a cantora e... com a América profunda. Foi também essa a primeira vez que ouvi um dos meus temas preferidos - "Together Again" - que só mais tarde descobri pertencer a Buck Owens. O deslumbramento continuava com "One of these days" de Earl Montgomery, "Here, there and everywhere" de Lennon e McCartney e culminava em "Sweet Dreams" de Don Gibson, cantado com Rodney Crowell.Bruce Springsteen desfez-se da E-Street Band e eu nunca mais fui o mesmo. O farol estava a apagar-se pela altura em que ouvi um CD que descobri coberto de pó e abandonado na cave de uma discoteca do Rossio. Estávamos em 1993, o álbum era de 89, chamava-se "Keys to the highway", de Rodney Crowell, e assentou como uma luva no meu estado de espírito da época. Rodney expiava problemas conjugais e a morte do pai, eu convalescia de uma doença. "Don't let your feet slow you down", "now that we're alone", "you been on my mind", "Many a long & lonesome highway" ainda hoje são clássicos da minha prateleira. Com "Keys to the highway" e versos como "many a long and lonesome highway lies before us as we go, in the end i'll do it my way look for me where the four winds blow". Descobri os poderes terapêuticos da steel guitar e até hoje é ela que me faz companhia nos momentos mais difíceis.Um dia ouvi Nanci Griffith cantar qualquer coisa belíssima sobre uma Interstate numa banda sonora country de um filme - pasme-se - com John Cougar Mellencamp e corri a comprar "The MCA Years". O Sul profundo cantado por Lucinda Williams ou Steve Earle assume tonalidades poéticas em Nanci Griffith. A partir de então, "Trouble in the fields", "From a distance", "Listen to the radio", "I wish it would rain", "Late night Grande Hotel, "Outbond plane", fazem parte do meu baú pessoal, a minha visão romântica do Sul, onde não existem negros contra brancos nem Ku Klux Klan. Só a voz frágil e delicada de Nanci cantando: "I am leaving Mississipi in the evening rain, these Delta towns wear satin gowns in a high beamed frame, Loretta Lynn guides my hand through the radio."Afogado definitivamente na country, ouvi avidamente de tudo um pouco até acabar em Houston a ver Willie Nelson ao vivo cantar uma das mais belas canções de sempre da música country: "Blue Eyes cryin in the rain". Se há razões para gostar tanto do género, basta procurá-las na caixa "Revolutions of time... The Journey 1975/1993". Aí encontro esse tema e outros dos meus preferidos: "Uncloudy day", "Always late", "Blue skyes", "Whiskey River", "Mammas don't let your babies grow up to be cowboys", "The Party's over", "Little old fasioned Karma", "Goo time Charlie's got the blues", "City of New Orleans", "Me and Paul", "Living in the promised land", "Nothing I can do about it now", "Ain't necessarily so". E se precisasse de uma caixa de dez CD para repousar comigo no túmulo, levava comigo "The Complete Hank Williams" e ouviria para sempre "Cold cold heart", "Your cheatin' heart" ou "Lost highway". Chegamos finalmente ao disco que mais me marcou recentemente e materializa o meu amor pelos blues, "The Ted Hawkins Story, Suffer No More", um grito, um uivo na noite vindo da rua onde Ted passou grande parte da vida a cantar. Quando ouvi pela primeira vez a versão acústica de "Watch Your Step", só consegui parar depois de cinco ou seis audições repetidas. A música popular é isto, este lamento, esta solidão, este sofrimento, o mesmo que moveu Bruce Springsteen e Hank Williams a compor.

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