Todos diferentes, todos iguais

Chegou a pensar-se o pior, mas as novas tendências do sucesso a pronto que se abateram sobre o mercado português não beliscaram a integridade dos seus veteranos. Xutos, GNR, Represas, Madredeus, Veloso ou Godinho, quase todos se salvaram no vórtice de crescimento da indústria musical em Portugal. Apesar de eles próprios não terem crescido.

Embora a tendência de anos precedentes já o indiciasse, 1998 pode bem ser recordado como o ano de afirmação incondicional do mercado musical português e das suas diversas formas mercantis. Não só se abriram novos paradigmas, de que a salvação pelo sucesso imediato constitui o exemplo mais visível, como se cristalizaram os anteriores, preservados pelos artistas ditos consagrados. Mais diferentes ou cada vez mais iguais, artistas há-os para todos os gostos, quando não há mercado que resista. E, como matéria rochosa que resiste à erosão, a velha militância musical portuguesa permanece bem viva num horizonte marcado pela ameaça de rápidas transformações. 1997 havia terminado com Paulo Gonzo e 1998 com Gonzo começou. O sucesso retumbante de "Quase Tudo" levou tempo a esmorecer, e só no final de Janeiro, depois de nove meses de permanência consecutiva, o álbum abandonou o top nacional de vendas da Associação Fonográfica Portuguesa (AFP). O músico regressaria ainda este ano com "Suspeito", álbum veraneante que, sem ter conhecido o percurso comercial do seu antecessor, chegou para cravar por mais três meses o nome de Gonzo no top 30 nacional. Em dois anos, Paulo Gonzo permaneceu um total de 12 meses no pedestal das vendas portuguesas, expressão clarividente de longevidade de um artista que levou uma vintena de anos a compilar os seus primeiros grandes triunfos comerciais. De pedra e cal continuam os Xutos & Pontapés, instituição jurássica do rock lusitano que surgiu em 1998 com dois novos trabalhos: "Tentação", conjunto de temas compostos para a banda sonora do filme com o mesmo nome, andou pelo meio da tabela durante dois meses, enquanto "Vida Malvada", "best of" que revisita os momentos mais significativos de uma carreira que se apresta a completar 20 anos, permaneceu durante mais de quatro meses no top e chegou a número quatro. Luís Represas é de todos os consagrados aquele que aparenta ter mais motivos para sorrir. "A Hora do Lobo" confirmou o apetite do músico para as vendas a prazo, e, ainda que o álbum não tenha esboçado uma subida aos primeiros lugares do top, conservou-se nessa lista por oito semanas consecutivas. O grande triunfo de Represas em 1998 não passou contudo pela música. Foi no campo da restauração que o também empresário mais se revelou, fundando o mais concorrido bar da Expo bem ali à beira Tejo. Nos dias em que a programação cultural no recinto se revelava desinteressante, nada como uma saltada ao Bugix e ao seu menu diário de mil facetas diferentes: passos de dança por cima das mesas, claustrofobia latente e o direito a participar em boas cenas de pancadaria constituem algumas das mais estimulantes experiências aí ocorridas. Menos esfuziantes estiveram os GNR e os Madredeus. No primeiro caso, Reininho e os seus pares arriscaram um produto menos direccionado para o consumo de massas, e talvez essa seja a principal razão para o sucesso relativo obtido com "Mosquito". Ainda assim, o álbum permaneceu nos tops por mais de três meses, embora quase sempre afastado dos lugares cimeiros. Menos compreensíveis são os escassos números que acompanharam "O Porto", o segundo duplo álbum ao vivo lançado pelo conjunto português que mais vende além fronteiras. O sucessor de "Paraíso", registo que havia encerrado o exercício de 1997 com vendas superiores a 60 mil unidades, pouco mais logrou que escassos meses no fundo da tabela de vendas nacionais. Com os Delfins a contemplarem dos céus o feito de serem a banda portuguesa que mais vende no seu mercado de origem, dois dos seus rostos mais influentes desceram à terra para mergulhar na produção em nome próprio. O primeiro foi Fernando Cunha, disposto a demarcar-se dos Delfins pela via de uma pose "rocker" que nem por isso lhe trouxe grandes dividendos: "Invisível", estreia a solo editada ainda no primeiro semestre de 1998, fez jus ao título no que a vendas diz respeito. Já o mesmo não serve para Miguel Ângelo, ícone sacrossanto da pop portuguesa que cada vez mais se tem vindo a revelar mediante fenómenos extramusicais. Dono de uma imagem que é já instituição televisiva, Ângelo totalizou não uma, não duas, mas três estreias em 1998: começou por transferir-se do canal líder de audiências para a televisão de serviço público, confirmando a sua vocação para alinhar no estrito lote dos convocados para horário nobre; depois, já em Novembro, carimbou de uma assentada a estreia literária com "A Queda de Um Homem (Ensaio para Romance)", e a estreia musical a solo com "Timidez", álbum orgulhosamente fiel à pop dos Delfins que ascendeu rapidamente a disco de ouro. Quem menos arriscou foi quem mais petiscou, e o apego ao bom nome da banda cascalense acabou afinal por soar mais alto. Datam desta altura as duas últimas grandes aparições do ano da velha guarda lusitana. Bem do alto da milagrosa oliveira dos mercados e dos números, Rui Veloso e Sérgio Godinho continuam entretidos a explicar às criancinhas como consolidar instituições musicais em Portugal: fazendo o mesmo, com mais uns anitos em cima. O destaque vai para o primeiro, que, não contente por ter lançado um novo álbum de originais após três anos de interregno, o viu ascender de imediato aos lugares cimeiros do top nacional. "Avenidas" é já disco de platina, ocupando de momento o quarto posto do top de vendas da AFP. Mais comedido, Sérgio Godinho apostou numa revisitação da sua carreira em formato "live". Do encontro dos recentes concertos no portuense Rivoli e no lisboeta Ritz Clube saiu "Rivolitz", álbum que tem vindo a subir gradualmente para o grupo dos 15 primeiros e que é já disco de prata. Mas, agora que a fogueira da intervenção deu lugar ao paternalismo dos primeiros cabelos brancos, Sérgio Godinho é não só um excelente escritor de canções, mas também um não menos profícuo padrinho de possíveis candidatos ao lugar. Os Silence 4 que o digam. Ângelo, Veloso e Godinho são os únicos nomes que à data desta edição permanecem no top 30 nacional, e, se a sua carreira comercial é ainda demasiado curta para análises que se pretendem objectivas, é contudo suficientemente esclarecedora para uma compreensão do fenómeno global da música popular portuguesa em 1998. A emergência de um novo paradigma industrial - o sucesso a pronto, no acto de estreia -, traduzido por bandas como os Silence 4 ou os Excesso, não obliterou a prestação comercial deste decano círculo de veteranos. Os portugueses compram cada vez mais discos portugueses, e o único fracasso passível de ser apontado aos artistas consagrados da praça lusitana é o de não terem sido arrastados nesta leva generalizada de expansionismo. As suas vendas podem não ter aumentado, o que num mercado em crescimento acelerado constitui só por si uma expressão negativa. Mas a estabilidade dos números e a coabitação em paralelo serão afinal o garante de que o futuro ainda é muito tempo.

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