Ficou alguém por vir?

A Expo. Os festivais. Os estádios, os casinos e tudo o mais. A expectativa era alta à chegada, mas agora que 1998 está de partida fica a certeza de um ano ímpar de concertos em Portugal. Da quantidade de todos à qualidade de muitos, a pergunta é hoje outra: ficou alguém por vir?

Não foram só os números e os nomes em palco que fizeram de 1998 um ano ímpar de concertos em Portugal. O crescimento sustentado das estruturas de apoio e promoção aos espectáculos, a edificação de novos espaços e o estabelecimento de novos projectos participam em uníssono de uma tendência expansionista que atingiu o seu expoente no ano que agora finda. Portugueses e estrangeiros, todos embarcaram na vaga de oportunidades que 1998, como ano de excepção, abriu. Beneficiaram sobretudo os primeiros, a jogar em casa e tirando partido de uma visibilidade de que nem sempre desfrutam. Mas também beneficiaram os segundos, alguns dos quais em estreia e outros tantos deslumbrados com os encantos de um país de sol e de mar. Beneficiámos, enfim, todos, na certeza de que os tempos em que Portugal se via enredado no estigma - real, demasiado real - de país periférico e alheio às rotas instituídas dos concertos, das digressões e do mundo estão hoje bem enterrados.Mãe de todos os acontecimentos, a Expo-98 constituiu desde logo o elemento potenciador do ano de concertos. Para além dos seus 132 dias expositivos, palco de todos os nomes e de mais alguns, a Expo viu serem criados debaixo da sua alçada eventos paralelos que se saldaram por um êxito não mais que relativo: o Festival dos 100 Dias esqueceu a produção musical portuguesa - o projecto "Voz e Guitarra", levado ao Coliseu dos Recreios em Abril, constitui uma excepção feliz -, enfatizando a área da música clássica num programa nesse particular assinalável; e o Festival Mergulho no Futuro, apostado numa programação mais específica, oscilou entre o mediano - Fátima Miranda, Experimental Night - e a excelência das prestações de Talvin Singh, DJ Spooky e X-Ecutioners na DJ Night e, sobretudo, do projecto "As Guitarras Portuguesas Mutantes", da autoria de Nuno Rebelo. O melhor estava então reservado para o interior do recinto. O escalonamento dos diversos palcos da Expo para conteúdos musicais específicos revelou-se acertado, e o fado, no palco 1, o jazz, no palco 2, e a música moderna portuguesa, no palco 6, constituíram focos de eleição nos quatro meses que durou a exposição. O destaque vai para o último, alvo de uma programação delineada por Henrique Amaro, que dispôs em montra a essência da juventude musical portuguesa. Os concertos dos Ithaka, Primitive Reason e Mãozinha que aí tiveram lugar contam-se entre os melhores dos muitos que passaram pela Expo. A maior das desilusões foi protagonizada pela Praça Sony, que para além de padecer de uma logística mais que duvidosa se viu arredada de condições sonoras mínimas logo no seu primeiro mês de vida, quando o sistema de amplificação rebentou e fez abortar o concerto do colombiano Carlos Vives. Smoke City, o Festival Super Bock Super Rock e os repetidos encontrões e atropelamentos entre o público foram outras das desilusões que por aí passaram. No extremo oposto esteve o concerto de apresentação do projecto "Onda Sonora: Red + Hot And Lisbon", o melhor dos concertos levados a cena na Praça Sony. Outras menções honrosas incluem as actuações dos brasileiros Maria Bethânia, Hermeto Pascoal, Gilberto Gil, Ney Matogrosso, Mestre Ambrósio, Elba Ramalho e Caetano Veloso, de Youssou N'Dour, Kodo, Max Roach Double Quartet, Milladoiro, Garbage, Foo Fighters, Gene, B.B. King, David Byrne com o Balanescu Quartet, Tom Zé e Waldemar Bastos, o Festival Womad e, por último, Lou Reed. Nos portugueses, o destaque vai para os Gaiteiros de Lisboa, Paulo Bragança, Amélia Muge com as vozes búlgaras das Pirin Folk Ensenble e Jorge Palma, Telectu, Maria João e Mário Laginha com a Orquestra Metropolitana de Lisboa, o duplo concerto Tejo Beat e os projectos levados a cabo para o programa "Instrumentos" por Rui Júnior e O Ó Que Som Tem?, a história ilustrada da guitarra portuguesa por Pedro Caldeira Cabral e o trabalho com os adufes empreendido por José Salgueiro. Com o fim da efemeridade expositiva chegou um dos factos mais marcantes do ano musical português. No interior do recinto hoje conhecido como Parque das Nações ergueu-se um monumento ao refinamento acústico como poucos existem por esse mundo fora. A utopia de uma moderna sala de espectáculos com que os lisboetas sonhavam há anos concretizou-se finalmente no corpo do Pavilhão Atlântico (Multiusos) e o lote de estreantes não podia ser mais ambicioso: bem estiveram os Massive Attack e os Bauhaus, menos bem Marilyn Manson e Prince, e apoteóticos os Silence 4. O percurso triunfante da banda de Leiria não se ficou aliás por aqui: com uma média de 20 concertos por mês, os Silence 4 foram dos grupos nacionais que mais actuaram em 1998, e tanto o concerto de apresentação de "Silence Becomes It" em Leiria como a actuação de encerramento do Festival Sudoeste contam-se entre os principais momentos da sua curta mas fulgurante carreira.Nos restantes recintos nacionais, a quantidade e diversidade de concertos em nome próprio são sintomáticas do crescimento das diversas estruturas promotoras de espectáculos a operar em Portugal. Pelos estádios andaram Whitney Houston, Daniela Mercury e Placido Domingo; pelos casinos passaram Simone, os Manhattan Transfer e Tony Bennett; e nos restantes recintos fechados estiveram os Deep Purple, Adriana Calcanhoto, Swell, Ash, Fernanda Abreu, Mouse On Mars e, concerto dos concertos, Beck. Também os festivais convocaram parte significativa das atenções em 1998. Para além de um crescente número de eventos de pequena e média dimensão, a criação de novos certames como o 1º Festival de Músicas Contemporâneas de Lisboa constituiu outra das boas surpresas do ano. Por outro lado, as festas universitárias fazem-se com recursos cada vez mais avultados, e errado seria não mencionar as actuações dos belgas dEUS, na Semana Académica de Lisboa, e dos Morphine e Young Gods, na latada coimbrã. Mas foram os grandes Imperial, Paredes de Coura e Sudoeste os que mais deram que falar em 1998: Nick Cave & The Bad Seeds, James, Pulp e Cornershop, no primeiro, Divine Comedy e Tindersticks, no segundo e, no último, os Cure, Therapy?, Yo La Tengo, Fun Lovin' Criminals, Sonic Youth, Placebo, P.J. Harvey e Portishead, todos constituem propostas de vulto num cenário de concertos como nunca se viu Portugal. Os termos da questão inverteram-se. Com a escassez de há muito dissipada, 1998 trouxe consigo um paradigma tão novo quanto estranho à anterior realidade musical portuguesa: o paradigma da abundância. Já não nos incomoda a falta, incomoda-nos sim a necessidade de escolha. O "quem veio?" morreu e a pergunta afigura-se mais do que nunca pertinente: ficou alguém por vir?

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