O smartphone do futuro não precisa de mais ecrãs — mas, sim, de durar dez anos

Reparar e cuidar são dois verbos no centro da acção climática. A obsolescência programada e o custo e a dificuldade da reparação são exemplos de uma economia que não serve o clima e, por isso, “reparar é revoltar-se”, dizem os que defendem o direito à reparação.

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Reuters

Chloé Mikolajczak defende que o smartphone onde provavelmente estarás a ler este artigo deveria durar dez anos. A bateria deveria ser substituída em cinco segundos, como acontecia nos telemóveis sólidos, fidedignos e prontos para emergências que descansam em tantas gavetas. Todo o equipamento, que seria construído sem recurso a trabalho infantil e respeitando as normas do comércio justo, deveria ser desmontável apenas com uma polivalente chave de fendas. E as peças estariam disponíveis, em poucos dias úteis, durante a década de garantia que o software também suportaria.

“Neste momento, mesmo que tentes manter os teus dispositivos o máximo de tempo possível, muitas das vezes não os consegues reparar porque a forma como são feitos torna a reparação muito difícil, muito técnica ou muito cara”, começa por dizer a partir de Bruxelas a coordenadora da campanha Repair EU, que reúne organizações, negócios de reparação, iniciativas de reparação comunitárias e instituições públicas.

Apesar de 77% dos cidadãos da União Europeia (UE) dizerem que preferem reparar os seus bens, apenas 11% repararam os telemóveis quando se estragaram, nota a activista. A campanha pressiona a UE a legislar o direito à reparação, “que começa onde termina o direito do fabricante de produzir um produto não reparável”.

“Um smartphone de dez anos parece ser um desafio, mas está bem ao nosso alcance”, lê-se numa carta enviada pela campanha para a Comissão Europeia no final de 2021, e assinada por cem organizações, incluindo as portuguesas Lipor e Repair Café Lisboa.

À medida que os smartphones ficam mais poderosos e caros, as pessoas tendem a agarrar-se mais aos dispositivos, e fica mais difícil para os fabricantes lançarem novas funções capazes de seduzirem os consumidores a correrem para as lojas (a tecnologia de redes móveis 5G poderá ser a motivação necessária para mercados saturados voltarem a gastar largas centenas de euros num novo dispositivo, mas ainda é preciso aguardar por uma melhoria significativa do serviço).

O tempo de vida útil de um smartphone passou de 23,4 meses, em 2016, para 26,2 meses, em 2018, nos cinco países europeus analisados pela consultora Kantar Worlpanel (França, Alemanha, Grã-Bretanha, Itália e Espanha). Mas só a partir dos 25 anos de uso de um telemóvel é que se começa a compensar as emissões que resultam da produção e do tratamento de fim de vida do aparelho, calculou a coligação de organizações não governamentais Coolproducts, apologistas do ecodesign.

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O interior de um smarphone da Apple Unsplash

Segundo a campanha Right to Repair, são vendidos na UE 210 milhões de smartphones todos os anos, quase sete a cada segundo. “Fazer cada um destes telefones gera entre 40 e 80 quilogramas de CO2 (o mesmo que uma viagem de carro de três horas)”, diz a campanha. Prolongar em apenas um ano o tempo de vida útil dos smartphones na UE poderia poupar 2,1 milhões de toneladas de emissões anuais de dióxido de carbono, mostram os dados da Coolproducts.

“Indo mais longe e prolongando a vida útil de três para dez anos, poupar-se-iam 6,2 milhões de toneladas anuais até 2030 — uma redução de 42% na pegada global dos produtos”, continua a Repair EU. “Este é o nível de ambição certo para um continente que se esforça pela neutralidade carbónica”, diz Chloé Mikolajczak.

Há um ano, a UE passou a exigir que os fabricantes de máquinas de lavar, frigoríficos e ecrãs de televisão disponibilizassem peças e manuais de instruções a reparadores profissionais durante pelo menos dez anos após a retirada do produto do mercado. Os telemóveis e computadores são o próximo alvo das directivas sobre o ecodesign.

Resíduos electrónicos crescem 4% todos os anos

Reparar e cuidar são dois verbos centrais da acção climática. Isto é especialmente importante quando sabemos que “80% do impacto climático dos nossos dispositivos ocorre durante a fase de fabrico”.

“Pensa no momento da extracção do lítio, cobre, ou até ouro, do outro lado do mundo”, diz Chloé, cuja campanha que coordena estará focada nos telemóveis e tablets nos próximos meses. “Muitos destes materiais são necessários para a transição energética. São necessários para construir painéis solares, essenciais para construir turbinas eólicas. E, por agora, estamos a usá-los para equipamentos que ficam no nosso bolso, em média, dois anos. Quatro a cinco anos no caso dos computadores.”

Cada vez mais preocupados com os resíduos eléctricos e electrónicos, que aumentam 4% todos os anos, uma das maiores taxas de crescimento de lixo doméstico a nível global, há países na União Europeia com bons exemplos de medidas para forçar os fabricantes a tornar os produtos mais reparáveis e duradouros, mas “nenhum país é excepcional nesta matéria”.

França foi o primeiro país europeu a introduzir o índice de reparabilidade obrigatório em cinco categorias de dispositivos electrónicos praticamente omnipresentes nas nossas vidas.

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Uma das limitações do sistema de pontuação de 1 a 10 “é que são os fabricantes a avaliar os próprios produtos”. Mas a escala, que pode ser comparada ao índice de eficiência energética, trouxe mudanças não só para o lado dos consumidores, que podem fazer escolhas mais informadas, como para o lado dos fabricantes, que pela primeira vez disponibilizaram informação sobre a reparação dos produtos, de forma a conseguirem uma melhor pontuação.

O Conselho e o Parlamento Europeu têm vindo a demonstrar um apoio crescente por um índice de reparabilidade a nível europeu, cuja metodologia terá de incluir também o custo da reparação, na opinião da Repair EU. “Mesmo se o produto for reparável, se a reparação for muito cara, as pessoas vão substituir”, sentencia. O índice poderá ser uma realidade já em 2023, nos smartphones, tablets e computadores presentes no esquema de rotulagem de consumo de energia.

Um outro exemplo é o voucher de reparação em Viena, na Áustria. Graças à acção da organização sem fins lucrativos Eco Consulting, os cidadãos podem receber de volta até cem euros nas facturas de reparação de bicicletas, telefones ou máquinas de lavar.

Os equipamentos electrónicos representaram mais de 60% das 26 mil reparações subsidiadas com dinheiros públicos, contribuindo para uma diminuição de 3,75% no lixo electrónico da capital em 2021, divulgou o departamento ambiental da câmara. As experiências nas diferentes zonas do país na Europa Central foram tão bem recebidas que, a partir do início de 2022, o governo federal passou a devolver até 200 euros por reparação, que deverá ser feita numa oficina local e certificada, pagos com o fundo de recuperação da pandemia de covid-19.

Mas estes bónus são “apenas um primeiro passo”, disse Astrid Rössler, membro do Conselho Nacional da Áustria pelos Verdes. É necessária uma concepção de produtos mais inteligente e eficiente e mais financiamento para a investigação e desenvolvimento na economia circular, disse.

Aprender a arranjar

Em Portugal, desde o início de 2022 que o período de garantias foi estendido para os três anos, “um estímulo à promoção da durabilidade” que a associação Zero incluiu nos seis factos mais positivos do balanço ambiental do país em 2021.

De acordo com as Nações Unidas, o mundo deitou fora 53,6 milhões de toneladas de lixo electrónico em 2019. Apenas 17,4% terá sido correctamente recolhido e reciclado. Embora o destino do restante lixo seja desconhecido, é “improvável que tenha sido gerido de forma ambientalmente sã”.

Os aterros são uma opção, mas a ONU também nomeia as exportações ilegais para países de baixos rendimentos, “onde trabalhadores informais, incluindo crianças, adolescentes e mulheres grávidas recolhem, desmontam ou recorrem a banhos de ácido para extrair metais e outros materiais valiosos de artigos descartados”.

Na Europa, o activismo pelo direito à reparação não encheu ruas, como as greves climáticas que ganharam força mais ou menos em simultâneo. Mas levou as pessoas a juntarem-se em repair cafes pelo mundo fora e a aprenderem a arranjar com as próprias mãos as coisas de que são donas.

O site gratuito iFixit atribui há anos uma classificação de reparabilidade a cada novo dispositivo no mercado e disponibiliza instruções passo a passo para reparações caseiras, em 11 línguas e para 70 mil produtos.

“Muito da redução das emissões está fora do meu controlo. Mas se as medidas correctas forem implementadas, [a reparação] será algo acessível para toda a gente e, ao mesmo tempo, terá muito impacto”, defende Chloé Mikolajczak. “Pessoas que reparam fazem-no em conjunto, partilham conhecimento, ensinam-se umas às outras. Acho isso muito importante porque falta realmente este positivismo e criatividade na acção climática.”

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