Quando a excepcionalidade nas artes chama a si a normalização

Um Serviço Nacional de Cultura democrático não se faz nem sem pluralidade estética, nem sem um programa estruturante. Justamente o inverso do que se veio passando durante anos.

“Menos de 3 horas depois deste artigo ter sido entregue para publicação, a Senhora Ministra anuncia um conjunto de medidas de excepcionalidade. A excepcionalidade é inegável, mas demonstra que é possível e necessária uma outra, e radicalmente distinta, abordagem da forma de apoio às artes”: assim rezava o início de um post scriptum no artigo que aqui escrevi (“Enterre-se o ‘cadáver esquisito’ do festim teatral!”). Foi a minutos de entrar em linha, no momento em que a Senhora Ministra da Cultura ainda anunciava as medidas de excepção referentes ao apoio às artes. O artigo, de súbito, ganhou uma virtude de ponte entre um debate defensivo e um debate ofensivo de ideias. Desde logo porque sendo claro que a dimensão tão abrangente e dispendiosa de tais medidas é-o e só o pode ser num quadro de excepcionalidade. Mas com ela vem a comprovação de alguns factos para que importa olhar com mais atenção.

O primeiro é o de que as artes (e a cultura em geral) carecem de um reforço orçamental de grande dimensão. Esta excepcionalidade veio mostrar essa outra: a de construir um orçamento para a cultura muitíssimo maior como ponto de partida para se entrar na normalidade. Quero dizer que aquilo que antes era tido por normalidade é que era uma excepcionalidade de inferioridade abissal entre o que é necessário e se justifica e o que necessariamente se tornara injustificado. Mesmo sabendo que os valores em presença são de uma magnitude de excepção e que os recursos são finitos, os valores desta excepcionalidade distam menos, por excesso, dos que devem ser os da normalização do que distam, por defeito, os que eram tidos por normalidade.

O segundo é que a inexistência de ‘concursos’, sobretudo tal como até aqui foram (e ponho no pretérito porque não se pode permitir que se recue a eles) são completamente dispensáveis. Não porque no futuro o grau de abrangência possa ser tão lato, mas porque fica posto à evidência que as questões políticas de emergência em situação de catástrofe são uma decisão política. E esta nunca pode ser alijada da responsabilidade da tutela na avaliação da situação, de qualquer situação: não pode ser entregue, como ‘ouro ao bandido’ ou como dinheiros públicos a gostos privados. E em sentido nada figurado, mas real, a emergência (no duplo sentido da palavra) na cultura é anterior e posterior à pandemia. Porque em verdade, a pandemia mais do que ser a causa da catástrofe, deixou à mostra a consequência, agravada, da catástrofe pré-existente no sector.

O terceiro é o de que se a excepcionalidade, admitindo-a no sentido em que foi referida, foi necessária a fim de evitar o colapso total do tecido produtivo artístico, importa, no mínimo, de seguida, prosseguir na preservação desse mesmo tecido produtivo artístico. O que se não faz com políticas de eventos, mas sim e só se incluir um processo continuado, estruturado e estruturante, enquanto coluna vertebral de qualquer política cultural. O apoio ao evento é que deve ser a excepção.

O quarto é o de que as políticas de apoios, como já disse no artigo anterior, têm de ter sempre Cadernos de Encargos e ulterior Fiscalização; mas os próprios Cadernos de Encargos têm de variar entre si. E que os próprios processos e medidas de avaliação têm de diferir. É disso exemplo fácil de compreender, embora se queira escamoteá-lo em vez de corajosamente assumi-lo, que o grau de exigência técnico-artística possível de exigir para o apoio a um programa ou projecto em Lisboa não pode ser igual ao de Bragança. Não porque a excelência em si seja desprezável em Bragança, mas porque a componente sociocultural e a importância da presença artística continuada, mesmo se sem patamares de tão elevada qualidade técnico-artística, é factor primeiro para que se crie a massa crítica para essa mesma exigência.

A quinta, no seguimento, pressupõe diferenciações em função das diferenças de base: julgar diferente o que diferente é, é que é tornar igual a justiça do julgamento. A uma estrutura maturada se há-de exigir mais nos resultados, mas também a dispensa de avaliações de projectos por júris. Nestes casos o que conta é a determinação (e fiscalização) de Cadernos de Encargos porque para a avaliação há elementos suficientes de e no seu histórico. Que mais tarde a lógica do reconhecimento das capacidades já demonstradas seja substituída pela criação de espaços a Concurso (verdadeiro) com Cadernos de Encargos prévios e avaliação ponderada entre a tutela e Conselhos Consultivos, sim. Feita uma normalização de, diria eu, uns bons 7 anos, a lógica pode – e deve – inverter-se. Até lá são essas estruturas que garantem a reconstrução de um tecido produtivo abalado por sucessivas tentativas de o liquidar. Mas um dia desenvolverei este raciocínio.

De resto, mais outras questões que a questão levanta a elas voltarei com ênfase próprio e específico. Todavia, o que desde logo fica claríssimo – e em parte clarificado com os exemplos supracitados – é que tal como a pandemia ‘serviu’ para mostrar a indispensabilidade e reforço do Serviço Nacional de Saúde, também na Cultura é tempo de construir um Serviço Nacional de Cultura. E um Serviço Nacional de Cultura democrático não se faz nem sem pluralidade estética, nem sem um programa estruturante. Justamente o inverso do que se veio passando durante anos: a ausência programática de natureza cultural conjugada com a presença nefasta de uma política de gosto e afunilamento estético por mandantes sobre a própria tutela, instrumentalizando-a. Essa não pode ser a regra. A excepção do momento terá de ser o momento de excepção para a mudança de paradigma.

É por isso e para isso que, por mim e para mim, estamos apenas no princípio. Numa luta pela liberdade da criação artística alicerçada na cidadania da sua fruição. Ou seja: o cumprimento do artigo 73.º da Constituição da República Portuguesa.

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