“Somos um por todos e todos a favor do doente. Isto é uma máquina que não pode parar”

No Hospital de Santa Maria, um dos maiores do país, os profissionais e os espaços reinventam-se. Apesar da imprevisibilidade da covid-19, da violência de perder doentes quando se pensa que estão a melhorar, do desgaste das horas extras e de serem cada vez mais jovens os casos graves, ninguém baixa os braços.

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“Vamos lá, agora um bocadinho de força. Muito bem. Mais um pouco e agora vamos descansar. Não se preocupe. Estou a olhar e está tudo bem”, diz João Pereira, fisioterapeuta há 11 anos. Divide o olhar entre o monitor dos sinais vitais, do lado direito da cabeceira da cama, e os olhos do José — o nome é fictício para preservar a sua identidade —internado nos cuidados intensivos do piso 3 do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Nesta unidade de cuidados intensivos estão doentes em ECMO, uma técnica de oxigenação extracorporal que faz o sangue circular por uma máquina dando tempo aos pulmões para recuperar dos efeitos da covid-19.

O Hospital de Santa Maria tem 14 aparelhos ECMO colocados em várias unidades de cuidados intensivos. No piso 3, onde está também o serviço de medicina 2 — dedicado desde o início da pandemia à covid-19 —, a unidade divide-se por duas alas. Em tempos passados, ainda antes da era covid, este espaço foi uma enfermaria. O sol entra pelas janelas de uma das salas, constituída por dois quartos independentes e um com quatro camas, das quais apenas uma está vazia. Há um clima de paz e tranquilidade. “A luz natural é muito importante, ajuda a orientar. São doentes que chegam a estar dois meses em coma e têm alterações cognitivas”, explica a enfermeira Patrícia Belo.

Até ao final da última quinta-feira, dia em que o PÚBLICO esteve em vários serviços covid-19, estavam internados no Hospital de Santa Maria 31 doentes em unidades de cuidados intensivos e 96 em enfermaria. Acompanhámos o início do turno das enfermeiras Patrícia Monteiro, Patrícia Belo e Marta Pinto. As duas últimas já tinham experiência em cuidados intensivos de adultos e em ECMO. Estavam colocadas noutros serviços do Hospital Pulido Valente — que com Santa Maria forma o Centro Hospitalar Lisboa Norte. Na primeira vaga da pandemia foram chamadas ao Santa Maria e agora voltaram de novo para reforçar o serviço.

“O que fazemos aqui? Tentamos salvar pessoas”, diz Patrícia Belo. “São doentes num patamar elevado de gravidade e esta técnica de oxigenação fora do corpo ajuda a garantir a integridade física do doente.” Todos eles estão ligados a ventiladores, a monitores de leitura de sinais vitais, a máquinas que dão a medicação. São muitos fios e tubos por onde passam oxigénio, sangue, medicação. Dizem que hoje até está calmo, as máquinas estão a apitar pouco. Mas há sempre um sinal de alerta que se ouve.

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Esta unidade de cuidados intensivos tem cinco doentes em ECMO

Durante as primeiras duas horas que passam na sala, onde têm de estar devidamente equipadas para limitar qualquer risco de transmissão do vírus SARS-CoV-2, há sempre o que fazer. Ao final de duas horas trocam com outra equipa para poderem descansar. Duas horas depois voltam a entrar.

O trabalho é exigente, a responsabilidade que têm entre mãos também. “Nas últimas noites só sonho com isto”, confessa Patrícia Belo. “O estarmos aqui isoladas aumenta um pouco mais a responsabilidade. Tentamos dar o nosso melhor e aprendemos a gerir a expectativa e a eventual culpa que poderemos sentir, mas na certeza que fizemos o melhor.” Fala de uma profissão “mais rica” do que esperava que, sente, não tem sido devidamente valorizada.

Marta Pinto diz que também ganhou mais rugas desde o início da pandemia. Fala do “desgaste emocional” reforçado pelo facto de ter nesta fase doentes mais jovens para tratar do que tinha na primeira. E também pelo facto de a mortalidade ter subido. “Aqui é um pouco mais pesado. A relação com os doentes também é mais difícil por causa das máscaras. Só nos vêem os olhos. É difícil mesmo para nós que perdemos o contacto pele com pele com eles. Fazemos por se sentirem acompanhados.” Sempre que podem, transformam pequenos gestos em abraços que não são físicos. “Tivemos uma senhora grávida em ECMO. Fez uma cesariana e depois na neonatologia tiraram fotos ao bebé que colocámos à volta da senhora”, recorda.

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As enfermeiras Patrícia Belo e Marta Pinto, ajudadas pela auxiliar Fernanda, prestam cuidados a um dos doentes

Cedo para baixar a guarda

Ao contrário do que aconteceu na primeira fase da pandemia, quando alguns doentes chegavam conscientes à unidade e pediam para falar com a família antes de serem entubados, agora os doentes já chegam sedados.

À medida que melhoram, e que é possível tirá-los do estado de inconsciência, fazem o que podem para os ligar de novo à família que, em casa, também sofre por eles. José não consegue falar por causa do ventilador e ainda está ligado à ECMO, mas conseguiu ver a família através de videochamada.

João Pereira trabalha com ele a força muscular. Quando chegar a hora de se poder sentar estará mais capaz de o fazer. Está acamado desde Agosto e aquilo que para muitos é um acto simples, para José exigirá um esforço grande. “Os fisioterapeutas todos os dias avaliam os doentes e adaptam o plano às suas necessidades. Tanto podemos estar com um doente dez minutos como uma hora. Depende da situação. Trabalhamos duas coisa: primeiro a parte respiratória, depois a parte motora para que no futuro se possa colocar de pé”, explica. Entre as coisas boas que recorda está a recuperação de um doente na casa dos 60 anos que “esteve muito mal, mas saiu a andar”. Deste período também destaca que “a entreajuda entre profissionais melhorou”. “Somos um por todos e todos a favor do doente. Isto é uma máquina que não pode parar.”

Uma “máquina” da qual os ventiladores são apenas uma das muitas componentes e onde se cruzam profissionais de várias áreas e se reforça a rede entre serviços. “Estamos todos comprometidos com um desígnio que afecta transversalmente a sociedade”, diz o director do serviço de medicina intensiva João Ribeiro, destacando a “resiliência dos profissionais e das instituições de saúde”. Na medicina intensiva, “em alguns meses, triplicaram-se as horas extras com grande esforço dos profissionais”.

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João Ribeiro, director da medicina intensiva

Durante a tarde que o PÚBLICO esteve em Santa Maria, João Ribeiro teve de garantir a assistência de três doentes que precisaram de ser internados em cuidados intensivos. Apesar dos sinais positivos de que o pico desta segunda onda já passou e do decréscimo paulatino de novos casos de infecção, “vamos continuar a ter impacto nos hospitais”. “Tendencialmente irá diminuir, mas não de imediato”, alerta o responsável, para quem este abrandamento de novas infecções resulta mais “de alguma clarificação da mensagem passada à população do que deve fazer” do que “de um efeito dos confinamentos aplicados”.

Para o médico “o aumento de doentes mais graves nesta segunda vaga é o efeito do aumento de pessoas infectadas”. E perante recursos finitos, “faz-se uma gestão um pouco diferente”. “Isto não significa limitar cuidados a alguns doentes, mas estabelecer uma organização diferente para manter o nível mais elevado possível de cuidados”, explica João Ribeiro, dando o exemplo dos médicos de medicina intensiva que “todos os dias avaliam e contribuem para o tratamento dos doentes que estão fora do serviço”.

Um hospital que se reinventa

Nesta segunda fase da pandemia, o plano é manter assistência covid-19 com não covid-19, apesar da maior intensidade de procura dos dois lados. Por isso, no centro hospitalar funcionam em paralelo dois planos de contingência. “Temos mobilizado os recursos à medida do necessário para que haja menos impacto no não covid”, explica o presidente do conselho de administração Daniel Ferro, adiantando que estão a tratar de protocolos com outras unidades para que as equipas do hospital possam operar fora e assim diminuir possíveis impactos nas listas de espera para cirurgias. Mas também dentro do hospital têm existido transformações: melhoraram os processos para que doentes que possam estejam menos tempo internados, dando espaço a quem precisa e fazem-se obras para alargar outras unidades.

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Daniel Ferro, presidente do conselho de administração

Na área da resposta à covid-19, o espaço dedicado não tem parado de crescer. “O plano de contingência prevê até 250 camas, das quais 50 em cuidados intensivos. Parte da medicina interna está dedicada à covid-19 e o que fizemos foi distribuir especialidades médicas e cirúrgicas por áreas onde se poderia reduzir actividade menos urgente. Há cuidados intensivos que são unidades novas”, diz, referindo que isso implicou mobilizar profissionais de outros serviços. “Dos 26 blocos operatórios há cinco que não funcionam porque os profissionais foram mobilizados para os cuidados intensivos”, exemplifica, reconhecendo “a taxa de esforço elevada” que se tem pedido a todos.

No serviço de medicina 2, as quatro enfermarias já estão completamente dedicadas à covid-19. “Começamos por 20 camas, depois 40, depois 60. Durante algum tempo houve uma diminuição, mas depois voltou a aumentar para 60 camas. Agora temos as 80 camas dedicadas”, conta António Pais Lacerda, director daquele serviço. “Os doentes internados são sempre graves e podem agravar muito rapidamente”, explica. A maior parte está entre os 70 e os 95 anos, mas também há aqui doentes de 50 anos e com doenças associadas como obesidade, diabetes, doenças respiratórias graves.

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António Pais Lacerda, director do serviço de medicina 2

Com um número de camas de cuidados intensivos limitado, estas são reservadas apenas aos doentes mais graves. Outros, que em circunstâncias normais também seriam internados nestas unidades por precisarem de oxigenação, ocupam agora uma zona de cuidados intermédios criada no serviço de medicina 2. Este é mais um exemplo de como o hospital se reinventou para dar a melhor resposta possível a todos. Mas “é uma sobrecarga para os médicos e os enfermeiros, que não esticaram”.

É a imprevisibilidade da covid-19, que não se vê noutras doenças — em que é mais fácil saber o que esperar, mesmo no caso de um doente muito grave –, que torna tudo emocionalmente mais violento. “Às vezes acontece o óbito sem se esperar e é mais perturbador para toda a equipa”, assume Pais Lacerda, explicando que quando se percebe que nada mais se pode fazer, permitem que família vá ver o doente. “Dá aos familiares algum conforto. Eles também percebem o agravamento ou a melhoria do seu familiar quando falam com eles por telemóvel. Se falam muito e não se cansam, ou se vão reduzindo os telefonemas e dizem estar mais cansados a falar.”

"Um ano muito duro"

Enfermeiro há 35 anos, Carlos Neto assume que “este é um ano que tem sido muito duro” com “mais horas de trabalho”, mas também “mais disponibilidade, mais capacidade de interagir e resolver rapidamente o que surge de novo”. “Mas é também um estímulo porque é para conseguir o melhor para o doente”, diz o enfermeiro chefe da urgência geral e covid-19. O novo espaço, construído de contentores modulares, ocupa o antigo estacionamento da urgência geral. Está dividido em zona de triagem, tem nove quartos para quem espera por internamento — incluindo três de pressão negativa —, uma máquina de TAC e uma sala de reanimação que já foi usada algumas vezes.

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Na urgência covid, o espaço divide-se entre triagem e uma zona para doentes que aguardem internamento

Anabela Oliveira, directora da urgência geral e covid-19, explica que “é totalmente diferente” a realidade com que lidam agora comparando com a era pré-covid. A começar por terem “duas urgências separadas”, com a necessidade de dividir equipas e com um “processo de gestão do doente que é todo mais difícil”. Mesmo quando a procura de cuidados nada tem que ver com covid-19, há sempre a incerteza sobre quem está ou não positivo.

Carlos Neto explica que todo o circuito é de sentido único para garantir a segurança. Na triagem estão médico e enfermeiro e há um doente por box. “Pergunta-se por antecedentes pessoais, medicação que toma, se tem alergias, se esteve em contacto com alguém infectado, que sintomas e há quanto tempo os tem e avaliam-se os sinais vitais”, enumera. “Se a pessoa não for devidamente avaliada na urgência pode ser complicado”, reforça Anabela Oliveira, assumindo que esta “é uma doença desafiante”. Tal como os colegas salienta a resiliência dos profissionais, mas diz: “Não há heroísmos. Trabalhamos para colocar ao serviço das pessoas tudo o que sabemos.”

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Enfermeiro Carlos Neto e a médica Anabela Oliveira, que dirigem a urgência geral e covid
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