Altri e Navigator: concorrentes no negócio, aliados no combate aos incêndios

Dois grupos empresariais concorrentes da fileira do eucalipto juntaram-se em 2002 para criar a Afocelca, uma estrutura partilhada composta por 350 operacionais, 60 meios pesados e ligeiros, e três equipas aerotransportadas para a prevenção e apoio ao combate dos incêndios florestais. Em conjunto, gerem mais de 200 mil hectares de floresta. Em 2019, a área ardida foi “zero”.

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Orlando Ormazabal, originário do Chile, é o comandante da Afocelca. A partir da Central de Operações (COA) de comando único, com ligação à rede nacional de alerta, instalada na unidade industrial da Celbi (grupo Altri), na Figueira da Foz, gere uma estrutura com 350 operacionais – entre técnicos florestais, supervisores, combatentes, operadores de central e oficiais de ligação –, 60 meios pesados e ligeiros de combate a incêndios, e três equipas aerotransportadas em helicóptero (cada aeronave equipada com sistema Bambi Bucket).

Todos estes meios – humanos e técnicos – operam em colaboração e coordenação com a Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC), GNR, bombeiros, associações de produtores florestais, Direcção-Geral dos Recursos Florestais (DGRF) e outras instituições relacionadas com a defesa da floresta contra incêndios.

A missão de Orlando é gerir esta estrutura espalhada pelo país, que zela por uma área superior a 200 mil hectares de floresta certificada (107 mil hectares sob gestão da Navigator e 87 mil sob gestão da Altri), de onde provém a madeira nacional para abastecer as fábricas das duas empresas (Celbi, Caima e Celtejo do grupo Altri, e as unidades de Aveiro, Figueira da Foz, Vila Velha de Ródão e Setúbal do grupo The Navigator Company).

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Apesar de terem como missão a defesa da área florestal sob gestão das duas companhias, “mais de 90% das intervenções” dos operacionais da Afocelca são realizadas em património de terceiros, para suster “o perigo” que uma má manutenção ou que um fogo florestal que deflagra em terrenos vizinhos pode representar.

Entre o custo das operações de prevenção que cada empresa suporta nas suas áreas florestais (4 milhões de euros a Navigator e 3 milhões a Altri) e as respectivas participações no orçamento anual para o funcionamento do dispositivo de prevenção e combate da Afocelca (3 milhões de euros no total, participados em 60% pela Navigator e em 40% pela Altri), os dois grupos empresariais investem, anualmente, 10 milhões de euros nesta vertente.

A dimensão empresarial, o volume de produção industrial e o volume de negócios das duas companhias justifica esta operação. A Navigator, que tem como CEO António Redondo, registou um volume de negócios de 1688 milhões de euros em 2019 e as receitas totais da Altri, que tem José Pina como CEO, somaram 753,5 milhões no mesmo ano. A Navigator emprega 3280 colaboradores em Portugal e a Altri 749. A Navigator exporta cerca de 91% dos seus produtos para 130 países dos cinco continentes e a Altri exporta 530 milhões de euros (2019), sendo a Europa (excluindo Portugal) o principal mercado de destino das vendas do grupo (68%, cerca de 741 mil toneladas). Em conjunto, gerem mais de 200 mil hectares de floresta certificada em Portugal.

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O comandante chileno Orlando Ormazabal gere uma estrutura com 350 operacionais, 60 meios pesados e ligeiros de combate, e três equipas aerotransportadas em helicóptero.

“Gestão florestal faz toda a diferença”

A Afocelca está vigilante e pronta a actuar 24 horas por dia e 365 dias por ano. Assim como o seu comandante e toda a estrutura, que opera por turnos e está localizada um pouco por todo o país. Todos são treinados para que o tempo de despacho, isto é, o período que decorre desde que o incêndio é comunicado à central de operações e esta ordena a mobilização de algum meio para o seu controlo, seja, “no máximo, 2 minutos”, refere Orlando Ormazabal. A seguir, o tempo de chegada, que é aquele que medeia entre a ordem de mobilização dos meios e o início das tarefas de combate ou de ataque inicial ao incêndio, não deve ultrapassar “30 minutos”.

As técnicas de combate variam. Vão desde a utilização de material de sapador (construção de linhas de contenção, com material de sapador, tidas como fundamentais no combate directo ou indirecto), ao uso da água (aérea, terrestre ou utilizada pelas equipas com material sapador), à utilização de meios aéreos como apoio ao ataque terrestre ou, ainda, através do uso de máquinas de rastos para a construção de faixas ou linhas de controlo no terreno.

Orlando conhece bem o terreno e todas as formas de actuar. No Chile, trabalhava no departamento de Protecção da Celulosa Arauco, “uma empresa muito grande” sediada em Santiago do Chile que opera em vários países da América Latina na fabricação de celulose, painéis e outros derivados de madeira.

“Fui convidado para vir a Portugal fazer assessoria na área do fogo à Celbi”, conta ao PÚBLICO. O seu trabalho foi “apreciado” e as vindas a Portugal multiplicaram-se. “Até que, em 2002, disseram-me que havia condições para este projecto [Afocelca] avançar e convidaram-me para ajudar. Comecei a vir. Vinha e voltava, vinha e voltava.” A partir de 2006 deu-se o impulso final. “Disseram-me, ‘Queremos que venhas para aqui’”. Orlando Ormazabal ponderou as “condições familiares”. E veio.

“A minha filha estava a terminar a escola secundária lá e queria entrar numa universidade aqui na Europa”. Orlando tomou a decisão. Mudou-se com a mulher e a filha para Portugal naquele ano e a experiência não podia estar a correr melhor. “Gosto muito. Fui sempre muito bem recebido em Portugal”, diz. Conta até a experiência da filha, que foi estudar para a Universidade de Salamanca (Espanha) e lhe dá nota das diferenças de tratamento que sente nos dois países: “Ela diz que sempre foi muito mais bem tratada aqui do que em Salamanca.”

O seu país de origem é anualmente fustigado por violentos incêndios, mas quando instado a comparar o número de fogos que deflagram em Portugal e no Chile, o comandante da Afocelca nem hesita: “Em Portugal são muitíssimos mais.” Há outra diferença: “Cá, a maioria dos incêndios, quando começa, põe em risco as populações e é preciso actuar logo; no Chile não é assim, porque a população está muito mais concentrada na capital, Santiago, que tem seis milhões de habitantes, e o combate aos incêndios lá é gerido com uma estratégia mais flexível”, explica ao PÚBLICO.

Em que medida a gestão florestal faz a diferença?, perguntámos. Orlando Ormazabal é taxativo: “Faz toda a diferença”, diz, lembrando, ainda assim, que, “em Portugal falta muita gestão”. “No Chile não é assim”, garante. “Há muito mais gestão e até o pequeno proprietário faz bastante mais gestão florestal.” O problema é que, por cá, “há este regime de minifúndio, que praticamente não existe no Chile”, país onde “um pequeno proprietário pode ter mil hectares”. Aqui, diz, “esse pequeno proprietário pode ter menos de um hectare e isso dificulta muito a produção e a gestão florestal”.

Questionado sobre as causas dos incêndios em Portugal, entre ocorrências naturais, negligência e fogo posto, o comandante da Afocelca responde de pronto: “Os de causa natural não são mais do que um ou dois por cento. A grande maioria são por negligência, pessoas que têm comportamentos menos rigorosos, com muito descuido, pessoas que fazem queimadas em condições que não deveriam ocorrer”, lamenta Orlando. E acrescenta: “Como a propriedade é pequena, parece que não é de ninguém, facilita-se mais.” Apesar de o número de ocorrências estar “a diminuir”, “continuamos a ter um nível alto” de fogos florestais. “Em Portugal temos dias com 450 incêndios; não há sistema no mundo que suporte isto”, diz.

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No terreno após 13.500 descargas eléctricas

Horas depois de o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) ter registado, de 20 para 21 de Julho, 13.500 descargas eléctricas derivadas de instabilidade associada a uma depressão em altitude e que geraram dezenas de ocorrências, o PÚBLICO foi ao terreno – Figueira da Foz e Tramagal (Abrantes) – ver como as equipas da Afocelca previnem e combatem os incêndios.

Desde 2005 que esta estrutura criada e financiada pelos grupos Altri e Navigator integra o dispositivo nacional de defesa da floresta contra os incêndios florestais (DFCI) da Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC). A nível internacional faz parte, como membro fundador, da Aliança para Acções em Manejo do Fogo, criada em Maio de 2007 durante a Conferência Internacional sobre Incêndios Florestais (Sevilha, Espanha).

A estratégia de actuação da Afocelca assenta na seguinte lógica: “Um menor tempo de controlo e combate dos incêndios implica menores perdas para as empresas.” E tem por base uma filosofia: “Não existem fumos ou fogos aceitáveis, pelo que todos deverão ser verificados, acompanhados e combatidos com a máxima prontidão.”

Nos últimos 10 anos, as duas companhias investiram “mais de 30 milhões de euros em protecção florestal, montante do qual 14 milhões foram aplicados directamente em medidas de prevenção”, referem em comunicado.

A estas medidas juntam-se “acções de sensibilização dos públicos-alvo, formação profissional, pré-posicionamento de maquinaria, participação em 45 comissões municipais de defesa da floresta durante a campanha e participação nos briefings semanais da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, em 11 distritos”.

Só em 2019, a Altri Florestal realizou controlos de vegetação em cerca de 26.500 hectares, o que corresponde a cerca de 34% da área de gestão no início desse mesmo ano. A empresa assegura o controlo anual de vegetação em, pelo menos, um terço da sua área de gestão. Beneficiou 4277 quilómetros de rede viária no mesmo período.

Henk Feith, director de estratégia e desenvolvimento florestal da empresa, faz questão de realçar, “Entre 2008 e 2018 não ardeu mais do que 1% da área florestal sob a nossa gestão”.

O ano mais crítico foi 2017. No país, entre 1 de Janeiro e 31 de Outubro desse ano, registaram-se 16.981 ocorrências (3.653 incêndios florestais e 13.328 fogachos) que resultaram em 442.418 hectares de área ardida de espaços florestais, mas na área florestal gerida pela Altri o registo, revela Henk Feith, situou-se nos “6,9% de área ardida”.

Apesar desse registo, tudo se geriu, nas palavras do director florestal Luís Ferreira, “sem condicionar o nosso futuro em termos de abastecimento de matéria-prima”.

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Segundo dados da Afocelca, “apenas 1% da área florestal” sob sua gestão é afectada pelo fogo. Em 2019, a área ardida foi "zero".

Em 2019, a área ardida foi “zero

A Navigator opera de modo semelhante ao longo do ano em matéria de controlo de vegetação e de acessos. Na Herdade da Caniceira (460 hectares), no Tramagal, onde, além de viveiros e áreas de conservação, curiosamente predomina o pinho (50% da área) e o sobro (restantes 50%), Nuno Neto, director de gestão florestal da companhia, explica: “Ao todo, intervimos em mais de 4500 quilómetros de caminhos florestais e aceiros [desbaste no terreno para impedir propagação de incêndios] em todas as propriedades geridas pela empresa.” Aliás, “o conhecimento do terreno por parte dos colaboradores da empresa ajuda as equipas de combate a conhecer os acessos e os locais de passagem” em caso de fogo.

Os resultados da intervenção conjunta das duas empresas na floresta estão à vista. Em média, “apenas 1% da área florestal” sob gestão destas empresas é afectada pelo fogo, referem ao PÚBLICO. Em 2019, a área ardida foi “zero”.

No território continental, os números da área queimada pelos fogos assustam. Olhemos para os últimos cinco anos: 2015 - 64.412 hectares; 2016 - 161.522,50 hectares; 2017 - 442.418 hectares; 2018 - 38.223 hectares; 2019 – 41.622 hectares.

E os custos associados a esta área ardida assustam igualmente. Um estudo do ICNF – Instituto de Conservação da Natureza e Florestas de 2017 refere que, por cada incêndio que atinge o território, existem custos ambientais e económicos associados e que o valor médio anual destas perdas rondou os 153 milhões de euros, no período entre 2006 e 2016.

Trata-se de uma estimativa baseada na matriz estruturante do valor das florestas da Estratégia Nacional para as Florestas, embora, segundo a mesma fonte, os valores possam ser ainda mais elevados em anos de extensas áreas ardidas. Foi o caso de 2003, em que arderam cerca de 440 mil hectares de florestas, matos e terras agrícolas, com perdas que ultrapassaram os 610 milhões de euros.

Os dados referentes a 2017 e 2018 ainda não foram divulgados pelo ICNF. No entanto, de acordo com a avaliação dos incêndios ocorridos entre 14 e 16 de Outubro de 2017 em Portugal continental da autoria da Comissão Técnica Independente (CTI1) nomeada pela Assembleia da República, sabendo-se que, em 2017, o fogo consumiu cerca de meio milhão de hectares em Portugal (mais de 50% da área ardida nesse ano nos países do Sul da Europa), os custos associados aos fogos desses anos (2017 e 2018) deverão superar os de anos anteriores.

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Projecto Afocelca 2.0 arrancou este ano

Voltemos à Afocelca. Já este ano, e tendo em vista o reforço da capacidade desta estrutura conjunta de prevenção e combate, arrancou o projecto Afocelca 2.0, que visa uma evolução do seu desenho operacional, “adicionando mais-valias” que permitem preencher um calendário de trabalhos ao longo de todo o ano, explicam as empresas em comunicado.

Por sua vez, a definição deste calendário permite “fixar uma estrutura permanente, aumentando a sua capacidade de desenvolvimento técnico e, por esta via, retomando a Afocelca o papel de liderança técnica que lhe é reconhecido desde o início da sua actuação”.

Passaram, pois, a ser incorporadas na estrutura as seguintes actividades complementares: a gestão do risco, com análise integrada do risco e posicionamento de meios em função de uma carta mais completa com as actividades de prevenção feitas pelas empresas, a operacionalização de um plano de fogo controlado, a coordenação das actividades de protecção contra pragas e doenças, e a coordenação das actividades de controlo de espécies invasoras.

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Os eucaliptos "são o terceiro grupo florestal mais representativo no mosaico português", correspondendo a "26% da floresta", segundo dados da Afocelca. O ICNF indica, contudo, que esta foi, nos últimos seis anos, a espécie arbórea florestal mais autorizada em Portugal.

Produção industrial de pasta de papel cresceu 6,1% em 2019

A floresta é o principal uso do solo em Portugal, ocupando 36% do território continental. Em 2018, segundo o INE, cerca de 38,8% da superfície de Portugal continental correspondia a área florestal, 26,2% a área agrícola e 12,4% a área de matos. De acordo com o último Inventário Florestal Nacional, os espaços florestais (floresta, matos e terrenos improdutivos) ocupam 6,2 milhões de hectares (69,4%) do território nacional continental.

Dados fornecidos ao PÚBLICO pela Afocelca referem que os montados e povoamentos de sobreiro e azinheira são “a principal ocupação florestal em Portugal continental, representando 34% da floresta”, sendo que os pinhais (povoamentos de pinheiro-bravo, pinheiro-manso e outras resinosas) “ocupam 30% da área florestal, enquanto os eucaliptais são o terceiro grupo florestal mais representativo no mosaico português: 26% da floresta”. Os carvalhos, castanheiros e outras caducifólias “ocupam os restantes 10% dos espaços florestais”.

Ainda assim, nos últimos seis anos, o eucalipto foi, de longe, a espécie arbórea florestal mais autorizada em Portugal, tendo sido autorizada ou validada a plantação de 81.475 hectares de eucaliptos, dos quais 2801 hectares nos anos de 2019 e 2020, de acordo com os dados revelados ao PÚBLICO pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF).

A grande parte das áreas autorizadas com aquela espécie são nas regiões Centro (31.849 hectares) e Lisboa e Vale do Tejo (24.704 hectares). Segue-se o Alentejo (13.233 hectares) e o Algarve (6297 hectares). O Norte é a região que tem menos área florestal com autorização de novos eucaliptos (5392 hectares).

Em 2018, de acordo com as últimas Contas Económicas da Silvicultura publicadas pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) em finais de Junho, a produção total de madeira em Portugal apresentou decréscimos em volume (-2,6%) e em valor (-3,1%) em relação a 2017. No que toca à madeira para triturar, a fabricação de pasta, papel, cartão e artigos relacionados originou, segundo o INE, “um aumento substancial da produção desta madeira (sobretudo de eucalipto) a partir de 2010, em resultado de investimentos efectuados nestas indústrias”.

Como resposta à necessidade de matéria-prima para transformar, a produção desta madeira tem sido “incrementada nos últimos anos”, destaca o INE, tendo-se mantido “acima dos 300 milhões de euros entre 2013 e 2017”. Após um aumento das remoções em 2017, devido aos incêndios florestais, o instituto responsável pelas estatísticas nacionais refere uma diminuição em volume em 2018 (-4,7%) da matéria-prima para transformar. Em termos nominais, essa matéria-prima decresceu, pelo terceiro ano consecutivo (-3,2% em 2018).

Dados revelados em Julho pela Cepi – Confederação Europeia de Produtores de Pasta de Papel através da portuguesa Celpa – Associação da Indústria Papeleira revelam que a produção industrial das empresas deste sector na Europa cresceu 6,1% em 2019, fruto de “avultados investimentos para aumentar a sua capacidade”.

Em 2020, “nos primeiros cinco meses, e devido ao impacto da pandemia Covid-19, a produção de papel e cartão recuou 4,5%” na Europa. Questionado pelo PÚBLICO sobre as quebras no nosso país, Luís Veiga Martins, secretário-geral da Celpa, esclareceu que “os números de Portugal não estão apurados”.

Artigo alterado às 23h04 de 27/07/2020, com correcção da área florestal gerida pela Afocelca e adição das áreas correspondentes à Altri e à Navigator; e às 10h26 de 28/07/2020, com rectificação do tempo de despacho. 

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