Regresso a João Gilberto, pela mão conhecedora de Zuza Homem de Mello

O anúncio de uma biografia de João Gilberto por Zuza Homem de Mello é uma boa surpresa, que promete iluminar-nos o Natal deste estranho e doloroso 2020.

“Tínhamos de estar prevenidos para quando João Gilberto não estivesse mais”, titulava o jornal Estado de S. Paulo, no dia 6 de Julho de 2019. Porque foi nesse dia que morreu João Gilberto, o genial criador da batida de violão que deu origem à bossa nova. Essa frase (que, completa, referia o momento em que João “não estivesse mais aqui”) remetia para um texto que Zuza Homem de Mello escrevera, a pedido do Estadão, reagindo à morte do genial músico. E onde ele se interrogava sobre eventuais inéditos que pudessem vir a surgir. “Agora que ele não está mais, o que vai aparecer dele, dos guardados com João Gilberto, não se sabe. O que se sabe é que João Gilberto mostrou ao mundo uma nova bossa de cantar e de tocar o samba, o baião, a marchinha, a valsa, o samba-canção, o foxtrote, um hino, uma cantiga.” E mais adiante: “Ouvir João Gilberto requer aprendizado. Requer concentração apuradíssima para se usufruir de tudo ao mesmo tempo: a precisão micrométrica do violão, a identificação das notas formando acordes, as sutis alterações harmônicas, o balanço rítmico irresistível, a destreza de seus dedos acertando as cordas do braço do violão” e muitos eteceteras. “João Gilberto era o melhor” ou, a terminar: “O samba do Brasil teve raros momentos de ruptura a determinarem os capítulos de sua história. O mais revolucionário deve-se ao gênio que foi cantar noutra freguesia, João Gilberto.”

Pois um ano exacto após a morte de João, a notícia é que Zuza está a acabar uma biografia de João Gilberto. Não é um primeiro olhar sobre o músico e a sua obra, já que Zuza, ao longo de uma vida que já soma 86 anos (como jornalista, crítico, investigador, radialista, musicólogo, produtor, escritor e desde Agosto de 2018 um “imortal” da Academia Paulista de Letras), por várias vezes a abordou, editando até em 2001, pela Publifolha, um primeiro perfil intitulado João Gilberto. Mas Zuza, ao que foi anunciado em vários jornais brasileiros, quis ir mais longe e já desde 2018 que vinha (com a preciosa ajuda da sua mulher Ercília Costa) ampliando notas, investigações e entrevistas de modo a escrever uma biografia de João Gilberto tão completa quanto possível. Com carta-branca da Editora 34, que assegurou a quase totalidade dos seus livros (Música popular brasileira cantada e contada, 1976; A canção no tempo, em co-autoria com Jairo Severiano, 1997-98; A Era dos Festivais, 2003; Música nas veias: memórias e ensaios, 2007; Eis aqui os bossa-nova, 2008; Música com Z, 2014; e Copacabana: a trajetória do samba-canção (1929-1958), 2017), e citando a notícia do jornal Tempo, “ergueu as mangas e foi a campo quando isso ainda era possível (e ao telefone quando deixou de ser) para fazer crescer um livro que já havia escrito sobre o cantor e compositor de Juazeiro da Bahia.” Um trabalho que não terminou ainda, mas que tem dez capítulos prontos, em revisão, devendo chegar aos 15 até final do ano.

Citando ainda o Tempo, Zuza diz que não são os boatos ou as histórias banais que o movem, mas sim factos comprovados: “Todo mundo quer saber a história do gato que pulou da janela por não aguentar mais João ensaiar a mesma música. Eu não caio nessa. Minha proposta não foi a de fazer um livro de anedotas, que até pode existir, mas não quis as fofocas. Só vou publicar aquilo que consegui confirmar.” Para isso, ele fez mais quatro dezenas de entrevistas, no Brasil e nos Estados Unidos (onde falou com vários músicos sobre o impacto da bossa nova no jazz), acreditando que com as suas pesquisas trará nova luz sobre episódios ainda pouco detalhados em entrevistas, artigos ou obras anteriores, como as “suas fases em Juazeiro da Bahia, de onde [João Gilberto] sai aos 18 anos, Porto Alegre, para onde vai depois de uma primeira temporada no Rio, pré-bossa nova, e Diamantina, em Minas Gerais.”

E tudo isso sem esquecer a música. Citando ainda, o mesmo jornal, que assim termina o artigo: “Zuza faz algo do qual muitos biógrafos se esquecem, como se seus ofícios fossem apenas braçais: parar de escrever, sentar-se diante de um LP e ouvir seu biografado cantar. Ao falar do dia em que chorou ouvindo o álbum Amoroso, que João lançou em 1977, Zuza Homem de Mello chora mais uma vez.” Uma boa surpresa, esta, que promete iluminar-nos o Natal deste estranho e doloroso 2020.

P.S.: Quis o embaixador Seixas da Costa, motivado por crónica anterior a esta, protestar em carta a este jornal por aquilo que considera coisa de uma “insólita aldeia de Astérix”: resistir ao Acordo Ortográfico. Está no seu direito. Houve logo quem ripostasse, com maior ou menor violência e indignação. Também estão no seu direito. Por mim, só tenho a agradecer. Ao querer divulgar o seu curto e azedo texto, cujo tom se harmoniza na perfeição com a vacuidade argumentativa, o embaixador prestou um serviço maior ao anti-acordismo do que muitos textos contestatários. Escreva mais, senhor embaixador, não desista.

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