O que podem os conservadores-restauradores fazer nos Painéis de São Vicente?

A carta aberta é assinada por um conjunto de personalidades que, por muito respeitáveis que sejam nas suas áreas de actuação, julgo não terem qualquer conhecimento da Conservação e Restauro e dos seus princípios, e nela vejo ideias sobre essa disciplina que, suponho, arrepiam qualquer pessoa de alguma forma a ela ligada profissionalmente.

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Susana Campos, conservadora-restauradora do Museu de Arte Antiga, chama a atenção para uma parte da pintura em que é visível a degradação da intervenção anterior daniel rocha

Acabei de ler a “Carta aberta sobre a integridade patrimonial dos Painéis de S. Vicente de Fora”, assinada por um conjunto de personalidades que, por muito respeitáveis que sejam nas suas áreas de actuação, julgo não terem qualquer conhecimento da Conservação e Restauro e dos seus princípios, e nela vejo ideias sobre essa disciplina que, suponho, arrepiam qualquer pessoa de alguma forma ligada profissionalmente à mesma. Infelizmente, não é nova nem rara essa perspectiva, mas este caso sobressai pela solenidade e notabilidade da manifestação que, por isso mesmo, ao contrário de outras, não pode simplesmente ser ignorada.

Directa ou indirectamente, já estive duas vezes envolvido no estudo material dos Painéis (em 1993-1996 e 2008-2012), mas isso é irrelevante para o caso. Da mesma forma é irrelevante o que acho sobre as marcas onde alguns vêem uma assinatura e uma data e outros vêem motivos meramente decorativos. E, já agora, nada tenho a ver com a iniciativa que suscitou a carta. O que me incomoda e, julgo, incomodará qualquer conservador-restaurador é a imagem que este documento dá da Conservação e Restauro e o estatuto que lhe atribui.

Antes de mais, parece que voltámos um século atrás: é referida a restauração e os restauradores, tal como no tempo de Luciano Freire ou José de Figueiredo, quando, hoje – aliás, já há algumas décadas –, a disciplina em Portugal não é a Restauração (termo que com este significado deixou de ser usado em meados do século XX), nem mesmo o Restauro, mas, sim, a Conservação e Restauro e o profissional é o conservador-restaurador. Não se trata de mero preciosismo semântico, mas de identificar o objectivo imediato de uma intervenção: em primeiro lugar, conservar, isto é, manter o que for possível e, só quando verdadeiramente indispensável, seguindo um princípio de intervenção mínima, restaurar, isto é, reparar os danos – e exclusivamente esses – que põem em causa a transmissão da obra às gerações futuras. 

Esse recuo no tempo, no entanto, não é suficiente e é necessário ir mais para trás para tornar válida a afirmação de que “o ethos actual da restauração de pinturas antigas a óleo autoriza os restauradores a repintarem o quadro baseando-se em princípios que excluem o respeito pela obra a restaurar”. Ainda antes de Luciano Freire iniciar a sua actividade, já em 1885, no primeiro manual português sobre o assunto, Manuel de Macedo escrevia que “a primeira condição que deve observar o artista consciencioso quando tem de proceder ao retoque de um quadro, é poupar com o máximo escrúpulo até aos limites do possível os pormenores da primitiva pintura. O retoque deve apenas empregar-se nos pontos em que haja faltas de tinta, – e nesses, ainda assim, com muita parcimónia”. No presente, quando qualquer conservador-restaurador rejeita em absoluto ser um artista, a situação é indiscutível e o respeito pela obra e a sua história é o princípio do qual derivam todos os outros.

Segundo este documento, também parece que a Conservação e Restauro não requer competências próprias e, portanto, qualquer um, independentemente da sua formação e actividade profissional, está em condições de validamente propor os procedimentos a seguir numa intervenção. Ora, uma coisa é discutir-se as implicações para a sociedade dos princípios de uma disciplina; outra, completamente diferente, é, de fora, decidir-se onde se deve ou não mexer. Imagine-se o que seria aplicar noutras áreas a metodologia estabelecida por esta carta: será que alguém se lembraria de vir para os jornais dizer o que é que uma equipa médica deve ou não cortar numa determinada cirurgia, por mais famoso que seja o paciente?

Além disso, não tem fundamento a afirmação de que os conservadores-restauradores “são simultaneamente historiadores de arte e directores de museu”. Conservador-restaurador, de acordo com os princípios da disciplina e as recomendações internacionais, é apenas quem possui formação superior de, pelo menos, cinco anos especificamente em Conservação e Restauro (os pormenores estão disponíveis em http://www.encore-edu.org, designadamente em “E.C.C.O. Professional Guidelines”), da mesma forma que somente é médico quem adquiriu determinada formação. É claro que se pode ter formação em mais do que uma área, mas conservadores-restauradores que actualmente são directores de museus não me ocorre nenhum e os conservadores-restauradores que conheço que igualmente têm habilitações em História da Arte, ainda que aproveitem essa situação, não confundem as profissões e é apenas com base nos princípios da Conservação e Restauro que intervêm numa obra. 

É evidente que aquilo que está em causa numa intervenção como esta é demasiado complexo para ser decidido com base em critérios apenas técnicos ou para ser deixado ao livre-arbítrio dos conservadores-restauradores. Mas isto é uma trivialidade para os conservadores-restauradores, que não são técnicos, nem meros executantes de indiferenciados procedimentos manuais. Antes de chegarem à intervenção propriamente dita, que é apenas a etapa final de um longo processo, têm que apresentar uma proposta, sujeita a discussão e aprovação, baseada no conhecimento material que só o contacto directo com a obra e os métodos de exame e análise proporcionam, nos princípios éticos da Conservação e Restauro e nos valores materiais e imateriais da obra estabelecidos por uma equipa multidisciplinar que, inter pares, naturalmente, integram. 

Sobre isto, uma interessante leitura, adequada a leigos e a especialistas, é o livro Conservation Treatment Methodology, de Barbara Appelbaum.

Como comentário final, mas marginal relativamente à questão de fundo, noto que a grande preocupação dos subscritores da carta, a de que o “inesperado restauro é susceptível de ser afinal a repintura de um elemento decisivo da nossa iconografia”, é deitada por terra pela citação de José de Figueiredo usada para ilustrar o grande perigo que são os conservadores-restauradores: “o mal dos repintadores é nulo”, pois “um técnico hábil pode eliminar o que foi acrescentado”.

Director do Mestrado em Conservação e Restauro do Instituto Politécnico de Tomar.

 
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