A revolta constitucional na Alemanha contra a União Europeia

Mas onde provavelmente a decisão do Tribunal Constitucional alemão vai deixar marcas mais profundas é na construção jurídico-política da União Europeia.

1. Não é exagero afirmar que a 5 de Maio de 2020 rebentou uma “revolta constitucional” na Alemanha contra a União Europeia. O título do comunicado de imprensa n.º 32/2020 do Tribunal Constitucional Federal alemão não podia ser mais claro: “As decisões do Banco Central Europeu (BCE) sobre o programa de compras de dívida do sector público excederam as competências da UE”.

No centro da contestação está uma decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão, a qual põe em causa a actuação de duas instituições da União Europeia: o Banco Central Europeu (BCE) e o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). A primeira instituição — o BCE — é considerada infractora das competências que lhe foram atribuídas pelos Tratados da União Europeia, nomeadamente de não ter respeitado o disposto no artigo 123.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), que dispõe sobre a compra de dívida do sector público.   Quanto à segunda — o TJUE — foi por sua vez acusado de ter efectuado um julgamento ultra vires — frase em latim que significa actuar para “além dos poderes”. Em causa está o julgamento de 11 de Dezembro de 2018, num processo de reenvio prejudicial, no qual considerou que a actuação do BCE não tinha infringido a legislação europeia.

2. As repercussões jurídico-políticas, mas também económicas, desta decisão judicial do Tribunal Constitucional Federal alemão podem ser profundas e com muitas ramificações, quer na Alemanha, quer na União Europeia. 

Isto ocorre, desde logo, pela importância e centralidade que o Estado germânico tem a nível europeu. Ao nível económico e monetário — uma das áreas mais importantes onde se projecta esta decisão — é necessário lembrar aqui, por exemplo, que o Deutsche Bundesbank (o Banco Central da Alemanha) tem uma subscrição de cerca de 21,5% do capital do BCE, sendo o seu mais importante membro. Assim, compreende-se de imediato o potencial impacto decisão judicial germânica. É verdade que esta se reporta a medidas tomadas no âmbito da anterior crise da Zona Euro e à actuação do BCE nela.

O Presidente do BCE na época, o italiano Mario Draghi, afirmou em 2012 que faria “tudo o que fosse preciso” para salvar o Euro. Mas, na óptica do Tribunal Constitucional Federal alemão, independentemente dos méritos económicos da política do BCE, o que o Mario Draghi e o BCE fizeram foi também uma violação da legalidade europeia. Agora, com o impacto da pandemia da covid-19 e com o BCE de novo a ser pressionado para compra de dívida pública pelo Sul da Europa, este acordão é uma “bomba” que não poderá ser ignorada.

3. Para além da política de compra de dívida pública pelo BCE, a faceta talvez mais importante da referido acordão — e com prováveis repercussões futuras profundas na construção jurídico-política europeia — é a que coloca a mais elevada e prestigiada instância jurisdicional alemã (o Tribunal Constitucional) em rota de colisão com a suprema instância jurisdicional europeia (o TJUE).

O Tribunal Constitucional Federal alemão foi inequívoco nas suas críticas à decisão no já referido caso de 11 de Dezembro de 2018, onde o TJUE optou por dar cobertura jurídica à actuação do BCE. “A análise realizada pelo TJUE sobre se as decisões do BCE relativas ao PSPP (Public Sector Purchase Programme), atendem ao princípio da proporcionalidade não é compreensível; nessa medida, o julgamento proferido foi ultra vires.” Acrescentam ainda os juízes alemães: “Aplicado desta maneira, o princípio da proporcionalidade (artigo 5.°, n.° 1, segundo período, e artigo 5, n.° 4 do TUE) não pode cumprir a sua função correctiva com o objectivo de salvaguardar as competências dos Estados-Membros, o que torna sem sentido o princípio da proporcionalidade”.

Para além disso, “ao desconsiderar completamente todos os efeitos de política económica decorrentes do programa, o julgamento de 11 de Dezembro de 2018 contradiz a abordagem metodológica adoptada pelo TJUE em praticamente todas as outras áreas do direito da UE.” A crítica não poderia ser mais dura e contundente.

4. Há relativamente poucos anos a jurista britânica Michelle Everson, autora conjuntamente com Julia Eisner do livro The Making of the European Constitution: Judges and Lawyers Beyond Constitutive Power (Routledge, 2007), notava que a característica mais curiosa do TJUE não era ser um tribunal político — o que para ela até era uma evidência —, mas como “tinha sido tão bem-sucedido na prossecução do seu programa político de integração da Europa, através da lei, sem atrair muita atenção pública, ou mesmo especializada.”

Pois bem, os tempos mudaram. Agora a benevolência que a União Europeia teve ao longo de várias décadas da parte dos órgãos jurisdicionais nacionais — e dos juristas em geral, usualmente muito compreensivos ou até entusiastas abertos do federalismo jurídico que impregnava os juízes do TJUE —, parece dar lugar a uma reacção crítica e de forte contestação. No caso da Alemanha, a revolta constitucional não podia ser mais nítida como pode ver por este excerto: “À luz das considerações acima mencionadas, o Tribunal Constitucional Federal não está vinculado à decisão do TJUE, mas deve realizar sua própria revisão para determinar se as decisões do Eurosistema sobre a adoção e implementação do PSPP permanecem dentro das competências que lhe são conferidas pela lei primária da UE.”

5. Para não se gerarem equívocos de leitura, é importante notar que o Tribunal Constitucional alemão não pôs em causa o princípio do primado, ou da primazia, do Direito da União Europeia sobre o Direito dos Estados-Membros (outra criação jurisprudencial do TJUE nos anos 1960, imbuída de federalismo jurídico). Tal como é referido no seu acórdão de 5 de Maio, “Se um Estado-Membro pudesse prontamente invocar a sua autoridade para decidir, através dos seus próprios tribunais, sobre a validade dos actos da UE, isso poderia prejudicar a precedência da aplicação concedida ao Direito da União Europeia e comprometer a sua aplicação uniforme.”

Essa é uma afirmação clássica que se pode encontrar em qualquer manual de Direito da União Europeia.  Só que o Tribunal Constitucional acrescentou — e  aqui está o aspecto  a reter pelas suas potenciais consequências jurídico-políticas, dentro e fora da Alemanha  — a seguinte consideração:  “Contudo, se os Estados-Membros se abstivessem completamente de realizar qualquer tipo de revisão ultra vires, concederiam aos órgãos da UE autoridade exclusiva sobre os Tratados, mesmo nos casos em que a União Europeia adopte uma interpretação legal que equivaleria essencialmente a uma emenda a um tratado ou a uma expansão das suas competências”.

6. A tese agora sustentada pelo Tribunal Constitucional alemão não é fundamentalmente nova. Quem conhece a sua jurisprudência face às questões europeias sabe que este tem tido uma contínua preocupação de demarcar as competências da União Europeia face às competências nacionais, preservado cuidadosamente estas últimas. Isso é assim em termos estritamente jurídicos.

Todavia, as repercussões do caso vão muito para além de uma discussão académica doutrinal entre juristas, que usualmente nada interessa à opinião pública. Uma decisão sobre um caso tão sensível como este — onde está em causa legalidade dos programas de compra de dívida pública pelo BCE — precisamente numa altura onde se adivinham já os contornos de uma nova e grave crise económica, não pode deixar de ter repercussões profundas. Importa reiterar aqui que o BCE foi considerado infractor da legislação europeia, por ultrapassar as competências que lhe foram atribuídas nos Tratados. E que a interpretação feita pelo TJUE no referido acórdão de 11 de Dezembro de 2018,  foi considerada abusiva (incompreensível, no termo mais diplomático).

Para o Tribunal Constitucional Federal alemão o que o TJUE fez, na prática, assemelha-se a uma (inadmissível) emenda de um tratado ou uma expansão das suas competências. A ser assim está naturalmente para além dos seus poderes, daí a acusação feita aos juízes europeus de terem efectuado um julgamento ultrapassando os poderes de interpretação de que estão incumbidos.  

7. Alguns pensarão que a decisão judicial foi apenas para consumo interno da Alemanha. O BCE, como instituição europeia, não está sujeito à jurisdição do Tribunal Constitucional alemão — apenas está submetido ao escrutínio jurídico do TJUE. Desta forma, o que tem a fazer é ignorar o caso e prosseguir com a sua política de compra de dívida pública. Mas não é assim tão simples. Talvez isso pudesse ser assim (e provavelmente até seria) se a decisão fosse de um Tribunal Constitucional de um Estado pequeno, como Portugal, onde ninguém lhe ligaria muito, pelo menos na União Europeia. Mas a sentença do Tribunal Constitucional alemão tem outras repercussões. 

Ao estabelecer que “os órgãos constitucionais, autoridades administrativas e tribunais alemães não podem participar nem no desenvolvimento nem na implementação, execução ou operacionalização de actos ultra vires”, criou um sério problema ao BCE e à União Europeia.  A não ser que se considere que Governo alemão e o Deutsche Bundesbank vão desrespeitar a decisão do Tribunal Constitucional (algo extraordinário) ambos, passados três meses após a decisão judicial de 5 de Maio, estão proibidos de participar na execução das decisões do BCE. Como se vê o impacto é grande.

Há, todavia, uma saída em aberto deixada pela sentença que talvez permita a todos salvarem a face. Para isso, o BCE necessitará de “adoptar uma nova decisão que demonstre de maneira compreensível e comprovada que os objetivos da política monetária perseguidos pelo PSPP não são desproporcionais”. Mas onde provavelmente a decisão do Tribunal Constitucional alemão vai deixar marcas mais profundas é na construção jurídico-política da União Europeia. A “revolta constitucional” alemã contra o TJUE, acusando os juízes europeus de um julgamento ultra vires, será, com grande probabilidade, secundada por outros tribunais nacionais em futuros casos.

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