De Setúbal para Belém, uma noite “sim” para A Garota Não

A Garota Não, projecto musical da setubalense Cátia Mazari Oliveira, provou em palco as suas potencialidades. Uma noite “sim”, de sala cheia, a prenunciar um bom futuro.

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A Garota Não no palco do Pequeno Auditório do CCB MARIA MIGUEL

Foi com curiosidade e surpresa que ouvimos o disco Rua das Marimbas n. 7, primeiro álbum a solo da cantora e compositora setubalense Cátia Mazari Oliveira, ou A Garota Não (nome artístico que adoptou). Porque as suas composições, em particular as letras, denotam frescura e talento. E essa curiosidade não podia deixar de estar presente na apresentação ao vivo do disco, que em Lisboa teve sala cheia (esgotando a lotação do Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém, na noite de 6 de Fevereiro) e uma assistência atenta e entusiasmada, parte dela vinda de Setúbal e já de si “conquistada” para os aplausos – tanto, que os primeiros foram logo para o roadie João Gabriel, mal ele surgiu no palco, parcialmente na penumbra, para colocar em cena uma guitarra.

O começo, ainda com algum nervosismo, fez-se com uma canção que não consta do disco, Não me satisfaz, a que se seguiram Mundo do avesso, A canção e Que mulher é essa (outra extra-disco), onde, a par dos músicos Sérgio Mendes (guitarra eléctrica) e Diogo Sousa (bateria, teclados), entraram duas vozes que Cátia elogiou muito antes de as ouvirmos (Ana du Carmo e Vanessa Mascarenhas), mas que pouco relevo tiveram no resultado geral. E aqui está um erro de base que começa a tornar-se muito comum em concertos: carregar nos elogios antes da “prova”, o que é sempre contraproducente.

Mas adiante. Não choro mais, No dia do teu casamento e Monstro (esta com música de Valter Rolo, e escrita por Cátia após e uma leitura do Livro do Desassossego) soaram bem mais equilibradas, embora, nalgumas passagens, a dicção da cantora ganhasse em ser mais clara para dar o merecido relevo às palavras – o que não invalida que ela tenha, como tem, uma forma de interpretar coerente com as canções que vai criando. Isso ficou patente, também, em duas versões: Porque me olhas assim, de Fausto Bordalo Dias, defendida com sobriedade e gosto; e Casa de mãe, de Criolo, cantada (justificadamente) em português do Brasil, arrancada ao samba e mergulhada numa doce melancolia.

A penúltima novidade da noite, Canção a José Mário Branco (cuja letra foi impressa em pequenos papelinhos que foram colados debaixo de um dos braços de cada cadeira da sala – uma surpresa só revelada quase no fim do concerto), ficou-se pelo meio termo: uma boa intenção, uma letra a ganhar gás e com música a preceito, mas a perder-se depois num refrão poeticamente pobre (“Liberdade/ Querida liberdade/ O nosso chão tem sonhos de vontade”). 80.nada, crítica à falsa independência dos recibos verdes e ao seu peso na vida quotidiana de uma geração, soou vibrante, seguindo-lhe Carta aberta a um amor ausente, Adamastor (que tem um videoclipe premiado) e A morte não sabe contar, um dos momentos mais altos da noite a nível musical e interpretativo, com a participação de Iza da Costa numa notável dança rítmica de inspirada precisão. No encore, mais uma inédita, esta muito bem conseguida: Mediterrâneo, sobre o drama dos migrantes que se fazem às águas rumo à Europa e tantas vezes morrem pelo caminho.

Voltando ao início, à curiosidade e à surpresa: a sensação, durante o concerto, de que várias coisas podiam (e podem) ser melhoradas, só existe porque a base é consistente e há um inegável talento na cantora, nos músicos e no repertório. O disco prova-o, o concerto reforça-o, e, devido a isso, o nome A Garota Não ainda pode ascender a outros patamares. Outra coisa, de idêntico relevo: o facto de (passem os elogios prévios) haver em Setúbal muita gente talentosa em torno deste projecto, dando-lhe o rosto inovador que ele tem. Além da cantora, dos músicos e de muitos outros nomes a eles associados, retenha-se ainda o original trabalho gráfico do CD, por Ana Polido; de Setúbal, claro. Cátia Oliveira não se cansou de sublinhar a origem setubalense de todos eles, e nesse orgulho “bairrista” (mais “citadino”, não do Tejo mas do Sado) há toda uma força que Setúbal decerto merecerá – ou não fosse a cidade a cidade “adoptada” por José Afonso, na segunda metade da vida do cantor, cuja obra inspirou e inspira A Garota Não.

Foi uma noite “sim”, a do CCB, para A Garota Não. Haverá mais. Aguardemo-las.

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