Cadernos do subterrâneo moscovita

O rosto e o corpo de uma personagem (e de uma actriz, Samal Yeslyamova, premiada em Cannes), numa voracidade quase animal. E ao mesmo tempo, humaníssima.

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O cazaque Sergei Dvortsevoy faz-se raro:Ayka é o seu primeiro filme desde Tulpan, estreado há cerca de dez anos, que também significou a sua apresentação ao público do circuito comercial português (antes disso, Dvortsevoy filmara um punhado de documentários, que em Portugal foram vistos em festivais e manifestações dedicadas ao cinema documental). Da sua experiência no documentário, Dvortsevoy conservou uma habilidade — às vezes, prodigiosa — para criar sistemas narrativos a trabalharem num realismo intenso, credível e sofisticado. Quem se lembra de Tulpan, e das suas correrias pelo meio duma estepe sobrepovoada, lembra-se por certo dessa maneira de filmar em movimento constante, tirando o máximo dos décors naturais e da inscrição das personagens na paisagem.

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Mutatis mutandis, reencontramos essa virtudes aqui em Ayka, mesmo se tudo o resto é diferente. Desde logo, não se espere o tom de comédia folk irrisória e de musical desértico que Tulpan exibia. Em Ayka estamos no inverno moscovita e não há nenhuma razão para rir — porque o inverno moscovita como Dvortsevoy o retrata é um deserto mais agreste do que a estepe do Cazaquistão, e porque a luta pela sobrevivência é ainda mais selvática. Ayka conta a via crucis da sua protagonista epónima, uma imigrante do Quirguistão (uma das antigas repúblicas centro-asiáticas da URSS) que acaba de dar à luz mas tem que esquecer a criança para entrar num vai e vem de pequenos biscates, para garantir o sustento do dia a dia, para fugir às autoridades de controlo da imigração (está na Rússia em situação “ilegal”), para se libertar das guerras dos mafiosos a quem deve dinheiro. Há cenas ao ar livre (invariavelmente nevadas e desconfortáveis) mas é como se se estivesse sempre num subterrâneo, esconso e atravancado, os enquadramentos de Dvortsevoy a filmarem Ayka numa espécie de captividade permanente, e a sublinharem — através da atenção a cada gesto, cada passo, cada acção — quer a obstinação da personagem quer a dimensão inapelavelmente física do seu esforço. O retrato da Rússia moderna é devastador, não isento de sibilinos comentários de um humor trágico (a clínica para cães, por exemplo, que sugere que os canídeos têm uma vida muito mais confortável do que pessoas como Ayka), mas sempre sem retórica ou demonstração, como se Dvortsevoy resistisse (e resiste) à enunciação e ilustração temáticas. E o que fica, muito pragmaticamente, em toda a pungência da acção pura, são o rosto e o corpo de Ayka (a actriz Samal Yeslyamova, premiada em Cannes), numa voracidade quase animal (e ao mesmo tempo, humaníssima). Tem-se aproximado Ayka da Rosetta dos irmãos Dardenne, e o parentesco é apropriado — mas Dvortsevoy, menos, digamos, “católico” do que os irmãos belgas, sabe que o puzzle da moralidade não existe na cave da Rússia moderna. Ayka é o seu retrato, o de um mundo sem lei nem Deus.

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