A cor da pele de António Costa

A ideia de que se formos de direita temos de estar do lado dos polícias, e se formos de esquerda temos de estar do lado do Bairro da Jamaica, não pode passar.

A resposta do primeiro-ministro a Assunção Cristas, que vá lá saber-se porquê tem o condão de fazer perder as estribeiras ao habitualmente fleumático Costa, não tem pés nem cabeça. Qualquer alusão de racismo dirigida à bancada do CDS é absurda, tendo em conta nomes históricos do partido como Narana Coissoró ou Hélder Amaral, e, sobretudo, por insinuar a existência de vestígios de discriminação no percurso de Costa, coisa que dificilmente terá acontecido a um descendente da elite goesa. A única vez que associei a cor da pele de António Costa a qualquer coisa vagamente parecida com racismo foi nas legislativas de 2015, por causa de uns cartazes produzidos pelo próprio PS, onde ia jurar que a sua pele foi clareada de propósito. Aí, sim, pensei que ainda estávamos no Portugal de 1950.

Dito isto, a insistência do CDS numa retórica do tipo “diga lá, senhor primeiro-ministro, se está do lado de quem bateu ou de quem levou” é absolutamente inadmissível, porque deseja à força traçar uma linha entre o “nós” e o “eles” que é muito perigosa num tema como este. A ideia de que se formos de direita temos de estar do lado dos polícias, e se formos de esquerda temos de estar do lado do Bairro da Jamaica, não pode passar. Marta Mucznik, assessora do PSD na Câmara de Lisboa, escreveu um óptimo texto no Observador (“O que a polémica do Bairro da Jamaica abafa”) sobre isso: “Enquanto o centro direita não evoluir para além do discurso securitário e de uma postura estritamente defensiva para denunciar clara e inequivocamente a injustiça social que representa o racismo, esta questão ficará sempre refém da esquerda.”

Claro que, como tentei explicar no meu último texto, teríamos de nos sentar a debater o que significa exactamente a palavra “racismo” neste contexto. Mas se eu tiver de escolher entre Mamadou Ba e os dois energúmenos de extrema-direita que o perseguiram na rua com um telemóvel e argumentos do género “os portugueses estão a pagar o teu salário, vê lá mas é se tens respeitinho”, garanto que estarei sempre ao lado de Mamadou Ba. Uma coisa é eu discordar profundamente da forma como ele aborda o problema do racismo. Outra coisa é negar-lhe o direito, numa sociedade livre, de defender o que quiser da forma que bem entender, ou negar a existência de um gravíssimo problema social no Bairro da Jamaica. Ou, já agora, pretender dissimular o problema igualmente grave que existe na polícia portuguesa em termos de violência, prepotência e camuflagem de actuações ilegais.

Sim, a palavra “racismo” tem hoje significados diversos e é usada por muitos afrodescendentes como o santo-e-senha de todas as injustiças. Se o adepto que em 2015 foi agredido por um polícia em Guimarães, à frente do filho, fosse negro, teria sido um caso de racismo. Como era branco, foi apenas violência policial. Aquilo a que se chama “racismo” é uma mistura de cor da pele com pobreza, porque se a pobreza for retirada da equação, os negros já podem visitar à vontade a Avenida da Liberdade. Essa pobreza não deriva do racismo – deriva, em primeiro lugar, da iliteracia, da desestruturação das famílias, da maternidade na adolescência. Contudo, se as mulheres negras de 40 anos estão a limpar as casas da classe média portuguesa, e se as suas filhas de 20 anos continuam a limpar exactamente as mesmas casas, então isso significa que o elevador social não está a funcionar para os afrodescendentes. E esse é um problema sério, que merece mais atenção e menos gritaria.

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