Violência sexual sobre crianças: do senso comum à intervenção especializada

Os tratamentos hormonais (vulgo “castração química”) não são a solução definitiva para a resolução do problema.

Assiste-se na sociedade portuguesa a um discurso muito pouco rigoroso no que respeita aos processos de intervenção com agressores sexuais. É verdade que a violência sexual evoca facilmente uma forte resposta emocional, o que leva a que alguns usem e abusem desta problemática como mote político, aproveitando a comunicação social para as suas intenções de mobilização, com uma sistemática deturpação de informações. De forma persistente, assistimos a um discurso pobre e simplista sobre um assunto complexo e que requer uma abordagem técnica, científica e especializada.

Do ponto de vista profissional, é para nós preocupante esta difusão ampla de soluções “fáceis”, que traduz uma confusão incompreensível entre os conceitos de abuso sexual (um crime) e pedofilia (perturbação mental). Acrescenta-se a isto a frequente indicação errónea de que os tratamentos hormonais (vulgo “castração química”) são a solução definitiva para a resolução do problema apresentado, o que contraria as melhores práticas clínicas internacionais.

Importa esclarecer que os indivíduos com interesses sexuais pedófilos apresentam uma preferência sexual, que pode ser exclusiva, ou não, por crianças pré-púberes, ou seja, que não tenham qualquer característica sexual secundária, geralmente com idade inferior a 13 anos. Há pedófilos que cometem o crime de abuso sexual, representando uma percentagem muito baixa (3-5% na população masculina). Há indivíduos diagnosticados como pedófilos que nunca abusaram sexualmente de uma criança, mantendo apenas essas fantasias sexuais e recorrendo a outros comportamentos como forma de gratificação sexual. Outros cometem a agressão sexual porque a cognição, por si só, não satisfaz o seu desejo sexual. Já os abusadores sexuais de crianças, apesar do abuso a estas vítimas, não possuem uma preferência sexual por estas, pretendendo satisfazer o seu desejo, sexual ou de outra natureza, e têm geralmente como alvo crianças ou adolescentes mais vulneráveis.

Uma intervenção com agressores sexuais é tecnicamente complexa e não pode ser sustentada em “achismos” ou ideias de senso comum. As diferentes características destes agressores demonstram a complexidade clínica e forense desta problemática específica, devendo ser alvo de ponderação num processo de avaliação forense e de intervenção psicológica. Por outro lado, a motivação num crime sexual nem sempre é de natureza sexual. A expressão agressiva da sexualidade pode servir para exprimir outro tipo de necessidades, como a de poder e controlo sobre a vítima. Nestes casos, a intervenção não deve ser dirigida à esfera da sexualidade, mas para outras dimensões, como a cognitiva e emocional, que terá depois efeito sobre o comportamento do sujeito. Sendo muitas vezes apontada como solução “mágica” para estes crimes de abuso sexual, a castração química, na verdade, não altera a orientação de base dos sujeitos. A Federação Mundial de Psiquiatria Biológica salienta que se trata de uma intervenção farmacológica que é pontualmente útil, desde que conjugada com um acompanhamento psicológico cognitivo-comportamental. Não pode, assim, ser entendida como a solução.

Estando o poder político verdadeiramente orientado para combater este tipo de criminalidade, como expressa a lei de política criminal, revela-se fundamental a definição de procedimentos claros para a avaliação e intervenção psicológica, de acordo com as características dos agressores. Estes programas devem envolver uma avaliação e intervenção integradas que contemplem o risco de violência sexual, o risco de recidiva em crimes sexuais e outros crimes e, ainda, incluir psicólogos e psiquiatras especialistas. Devem ainda existir em meio prisional e na comunidade, garantindo uma verdadeira aposta na reinserção. Em paralelo, importa apostar em programas de prevenção primária do abuso sexual, capacitando as crianças e os adultos numa lógica de aumento de conhecimentos e promoção de competências para lidar com potenciais situações de risco.

Por cada indivíduo reinserido socialmente, quantas potenciais vítimas protegemos?

Os psicólogos, especialistas em Psicologia da Justiça pela OPP

Alexandra Anciães (Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses)
Ana Conduto (Jurista)
Cristina Soeiro (Instituto Universitário Egas Moniz/Escola de Polícia Judiciária)
Ricardo Barroso (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro)
Rui Abrunhosa Gonçalves (Universidade do Minho)
Rute Agulhas (Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses/ISCTE-IUL)

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