Um homem na cidade

Sergei Dovlatov é o centro de um retrato de uma geração de artistas à deriva no regime soviético, e de um filme imperdível sobre o custo da resistência.

Dovlatov: onirismo desencantado, ironia selvagem, o desespero subterrâneo em busca da energia para resistir
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Dovlatov: onirismo desencantado, ironia selvagem, o desespero subterrâneo em busca da energia para resistir
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Em 1971, Sergei Dovlatov (1941-1990) não tinha onde cair morto. Escrevia para a revista dos operários navais, mas queriam que ele fizesse uma peça ardente e construtivamente revolucionária sobre o lançamento de um barco a quem foi dado o nome de um poeta que ninguém tinha lido. Enviava contos para a revista literária da sua Leninegrado natal, mas ninguém os publicava, e enquanto ninguém publicasse uma autoria sua, ele não podia ser reconhecido pela União dos Escritores Russos. Dovlatov estava separado da mulher e tinha uma filha menina, e embatia de cabeça com a rigidez burocrática de um regime anquilosado que insistia em instrumentalizar a arte para cantar as loas da grande revolução socialista que, no entanto, parecia só chegar a alguns.

Dovlatov, o filme, são seis dias na vida de Dovlatov, então apenas mais um escritor a procurar sobreviver pelo meio do labirinto soviético, hoje uma das mais aclamadas e importantes figuras da literatura soviética do século XX. (Como o cartão final desvenda, essa popularidade foi post-mortem; Dovlatov seguiu as pisadas do amigo Josef Brodsky e exilou-se nos Estados Unidos, onde morreu à beira de fazer 50 anos de um ataque de coração.) E é a homenagem por interposta pessoa de Alexei German Jr. ao seu pai, Alexei German (1938-2013), cineasta que, como o escritor, passou a carreira às turras com o regime e em vida apenas rodou seis filmes. Mas acima de tudo Dovlatov é um retrato de geração e de ambiente corporizado numa figura que serve de ponto de referência para o espectador.

O filme mergulha-nos desde o início num enorme e fluido rio de episódios e situações que vamos percorrendo ao sabor dos encontros do escritor, com a câmara do polaco Lukasz Zal (Ida e Guerra Fria) a envolver-nos numa dança permanente por entre apartamentos, cafés, estaleiros de obras, escritórios. É um percurso em câmara lenta onde a saída apenas nos devolve à porta de entrada, uma pescadinha de rabo na boca que garante que os escritores, poetas, pintores, escultores que se cruzam com Dovlatov nunca serão reconhecidos a não ser que verguem a cabeça aos desejos dos caciques.

Num momento em que as conversas sobre o valor e a importância da arte e da cultura voltam a tornar-se imprescindíveis, Dovlatov e o seu onirismo desencantado e acinzentado, a sua ironia selvagem e realista, o seu desespero subterrâneo em busca da energia necessária para insistir em resistir, é fita de visão obrigatória. Enquadra-se nas grandes tradições do cinema russo, do humanismo ao virtuosismo formal, ora recordando a precisão alegórica de Tarkovski, ora o desejo de liberdade do I Am Twenty de Khutsiev. E fá-lo através de um homem na cidade, à procura de um futuro que não parece brilhante — mas que, como todos os futuros, não está escrito à partida.

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