Somos todos “irmãos”, mas com Angola é tudo à flor da pele

João Lourenço começa esta quinta-feira a sua primeira visita de Estado a Portugal e a terceira dos 40 anos da democracia angolana. Uma relação com singularidades e sempre no fio da navalha.

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Rui Gaudêncio
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daniel rocha

O novo Presidente de Angola, João Lourenço, começa hoje a sua primeira visita de Estado a Portugal e vai ser observado ao microscópio como poucos, ou nenhum, estadista estrangeiro. Porque é uma incógnita num momento de agitação política interna e desafio económico global, mas também — e simplesmente —, porque é angolano.

“Haverá sempre uma relação especial com Angola”, diz um diplomata com profundo conhecimento das relações bilaterais. “Mas tem de ser gerida com pinças, temos de estar atentos aos sinais todos os dias, os sinais de lá e os de cá. É uma relação sempre no fio da navalha, porque é muito emotiva.”

É difícil explicar porque é que as relações entre Portugal e Angola são “especiais” e “diferentes” das que existem com os outros países de língua portuguesa. Mas em 2018 ouvir diplomatas, políticos e empresários portugueses sobre Angola, é ouvir falar de duas coisas: economia e emoções.

A relação mistura afectos, negócios, economia, diplomacia e cultura. “E tudo isso é atravessado por uma permanente carga emocional, uma grande proximidade e uma grande tensão”, diz o embaixador António Monteiro, que entre 1991 e 1993 foi chefe da missão de Portugal junto da Comissão Conjunta Político Militar (CCPM), criada na sequência dos Acordos de Bicesse, e que hoje é Presidente da Fundação Millennium BCP. “Não é só na política. É no dia-a-dia, na vivência, nos angolanos que se vêem nos hospitais em Portugal, na música cá e lá, no entusiasmo dos jovens que querem ir para lá, nos portugueses que se sentem em casa quando chegam a Angola. É essa teia que é importante e que define a relação.”

Outro diplomata diz que “há uma proximidade com os angolanos que Portugal não tem com os moçambicanos ou com os guineenses”. Outro, ainda, diz que, quando “se estabelece uma relação com um angolano, fica para a vida”. Fala-se de uma proximidade que “leva a uma dimensão muito irracional, que se via naquelas delegações de portugueses à Jamba [onde a UNITA, agora na oposição, tinha as bases militares da guerrilha]”. “Nada nos é indiferente a nós, nem nada lhes é indiferente a eles”, diz outro. “As pessoas reagem muito mais em relação ao que se passa em Angola do que em relação a qualquer outra ex-colónia. Os outros países também fazem parte do nosso mundo de afinidades, mas Angola é uma coisa mais íntima, mais chegada”, diz outro. “Qualquer medida autoritária do governo angolano é um escândalo em Portugal, como se fosse uma questão interna, em Portugal fica tudo ofendido”, diz o embaixador Fernando Neves, que foi embaixador em Luanda entre 2001 e 2002. “Não reagimos assim com Moçambique e muito menos com os outros membros da CPLP.”

Todos dão exemplos desta relação à flor da pele. A história do futebolista angolano Pedro Mantorras, que em 2007 foi detido em Lisboa por estar a guiar com uma carta de condução angolana caducada, é paradigmática. Passado pouco tempo havia cartazes em Luanda a pedir “Deixem Mantorras conduzir” e a retaliação não se fez esperar. Nas ruas de Luanda, os portugueses começaram a ser parados e detidos quando não tinham a carta de condução, “As coisas são muito imediatas”, diz um diplomata. “Quando eu estava em Angola, todos os dias havia problemas e aquela típica picardia”, conta Fernando Neves. “Uma das singularidades das relações entre Portugal e Angola é a ligação que a classe dirigente angolana tem a Portugal”, diz o antigo embaixador em Luanda. “Sentem que são descendentes de portugueses, numa espécie de aristocracia do século XIX transportada pelos comunistas para o século XX.” Outra singularidade é o facto de “a elite angolana ser totalmente destribalizada”. “As famílias”, como eles dizem quando se referem à elite, “têm relações fortíssimas com Portugal: vêm cá ao hospital, têm os filhos a estudar cá, compram cá casas, comem o que nós comemos, bebem o que nós bebemos”.

Esta semana, Alex Vines, director de investigação do Royal Institute of International Affairs (Chattam House), disse na conferência Angola: que mudança?, organizada em Lisboa pelo Clube de Lisboa e a União das Cidades Capitais Luso-Afro-Américo-Asiáticas (UCCLA), que antes de visitar Portugal, João Lourenço foi à França e à China (por causa do petróleo) e à Bélgica (por causa dos diamantes), e que “no discurso da tomada de posse, não mencionou Portugal”. E logo o embaixador Fernando Neves quis comentar: “O Presidente João Lourenço mencionou todos esses países no seu discurso com um único objectivo: fazer notar a omissão de Portugal!”.

Foi também nesta conferência que se ouviu, durante meia hora, o engenheiro português Luís Todo Bom fazer a detalhada apresentação do seu “programa de desenvolvimento para Angola em cinco anos”. Começou assim: “Este programa é o que eu faria nos próximos três anos e nos outros dois a seguir. Tenho uma certa embirração com a ‘diversificação da economia’. Demora gerações e não se faz falando. É um processo lento e Angola não tem tempo para isso.” Numa sala onde se ouviu muito a expressão “no meu tempo” ou “penso Angola há muitos anos e por isso…”, muitos não acharam estranho. Mas o espanto perante a provocação de propor um plano de governo para um país estrangeiro foi sentido por várias pessoas na sala. Diz Manuel Alves da Rocha, economista angolano, numa entrevista ao PÚBLICO, que é preciso um processo de “descomplexização total do relacionamento”, porque Portugal “continua a entender que detém o monopólio do conhecimento sobre Angola” e Angola “continua a acumular mágoas relacionadas com posições entendidas como ingerências”. O embaixador António Monteiro resume o problema assim: “Nada é novo no relacionamento entre Portugal e Angola, nem as dificuldades. Começámos com elas: fomos o último Estado europeu a reconhecer o governo angolano, já em Fevereiro ou Março de 1975. Pior do que nós, só os EUA, que só reconheceram em 1993, depois dos Acordos de Bicesse.”

A mensagem de Portugal para Angola está acertada: “Queremos ter a relação mais estreita possível, queremos manter e desenvolver os laços bilaterais, podem contar connosco, há boa vontade do governo e das empresas portuguesas, podemos ser úteis na relação estratégica União Europeia-África e na criação de um polo de desenvolvimento na África Austral”, diz uma fonte do governo. Os próximos dias vão revelar a mensagem que Lourenço traz. Espera-se a assinatura de acordos, avanços no problema das dívidas do Estado angolano às empresas portuguesas e novidades sobre o impacto da nova lei angolana dos “bens incongruentes”, que deverá fazer “repatriar” para Angola milhões de euros que estão em Portugal. E espera-se, como não podia deixar de ser, uma análise à lupa de todas e cada palavra que Lourenço pronunciar em Portugal e sobre Portugal. Sempre com os nervos à flor da pele.

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