Há uma guitarra que nunca se apaga

Uma súmula rápida da pop de guitarras podia ser assim: The Smiths. (Fim.) Johnny Marr, o homem que compôs aquelas canções, além das dos Electronic, bem como algumas dos Modest Mouse e dos The The, tem agora uma carreira a solo. Continua a ser um puto e sobe esta sexta-feira ao palco do Coliseu para cantar canções suas (que podiam ser dos Smiths).

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É importante que saibam: Johnny Marr ainda se importa. (Sim, esse Johnny Marr.)

Johnny Marr ainda se importa com cada canção, ainda se importa com os fãs, ainda gosta de ser estrela pop, ainda fica doido quando encontra um grande riff, ainda adormece à noite a pensar na canção pop perfeita e nas vidas que vai salvar.

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Takes guts para um tipo se tornar vocalista a meio dos 50s depois de ter ouvido a sua guitarra servir de base para melodias cantadas por vozes tão carismáticas como a de Morrissey, Matt Johnson ou Bernard Sumner

“Sempre me importei, John”, diz, rápido a ultrapassar a dificuldade em dizer um banal nome português. “Desde miúdo que sou assim, o que é normal porque os meus pais eram coleccionadores obsessivos de discos”, conta. O pequeno Johnny via os pais “a ouvir canções, as reacções deles”, ponderava o que as canções provocavam nos outros e em si mesmo e tirava notas mentais: “Ainda não sabia mas já estava à procura da canção perfeita”.

À frente dos Smiths encontrou-a múltiplas vezes — e não é de todo descabido conceber um mundo em que How soon is now, There is a light that never goes out ou Still ill são consideradas as mais extraordinárias canções alguma vez escritas. Esse mundo, aliás, tem uma localização precisa: é o quarto de qualquer adolescente demasiado letrado para a idade, nascido em finais de 60s, inícios de 70s.

Em 1987, os Smiths acabaram, no exacto instante em que eu tinha acabado de os descobrir — e até hoje sinto-me culpado por isso: na minha cabeça é como se Marr tivesse pensado “Bom, se este também quer ser dos nossos, então não brinco mais a isto”. 1987: o melhor e o pior dos anos na história da humanidade.

E foi um trauma tão grande para todos que nos 31 anos que passaram não deve ter havido um dia na vida de Johnny Marr em que não lhe tenham perguntado pelos Smiths — ao ponto de (por exemplo) eu ainda não me ter lembrado de vos dizer que o telefonema para Johnny Marr aconteceu para antecipar o concerto que Marr dará esta sexta-feira, em Lisboa, às 23h, no Coliseu dos Recreios, no âmbito do Super Bock Em Stock.

“Não me aborrece”, responde Marr, quando lhe perguntamos se fica chateado por estar sempre a ser questionado acerca de coisas que aconteceram há 30 ou 35 anos. “Se as pessoas ainda estão paradas nessa época, isso é problema delas. Muita gente prefere ficar no passado. Eu estou-me a cagar. Eu tenho a minha vida para viver e não tenho paciência para viver a pensar no que fiz. Está feito.”

Durante muitos anos foi um compositor que precisava de alguém para dar voz às melodias que tinha dentro da sua cabeça: nos Smiths era Steven Patrick Morrissey, nos Electronic era Bernard Sumner (que também foi dos Joy Division e dos New Order), isto sem contar com a sua tarefa de lead-guitar-barra-compositor nos The The e nos Modest Mouse. Mas nos últimos cinco anos começou a editar disco a solo atrás de disco a solo. Pica-se Call the Comet, o mais recente, e de repente damos com uma canção chamada Hi hello, que facilmente poderia ser uma grande canção dos Smiths.

Dilema: diz-se ou não isto a Johnny Marr? Por um lado, uma dose saudável de provocação só faz bem; por outro, para quê arriscar chatear um dos nossos heróis?

“Johnny, há uma pergunta que tenho de fazer”.

“Força, John”.

“Mas pode ser chata, Johnny”.

“Eu não sou a fucking queen, John”.

“Aquela canção, a Hi hello...”

“Sim...”

“Sabes o que me lembra?”

“Hum... Acho que sim, John.”

“Lembra-me uma grande canção dos Smiths”.

Talvez este seja um bom momento para fazer uma pausa e oferecer-vos uma avaliação de Johnny Marr enquanto pessoa, pelo menos tanto quanto é possível ao fim de mais de meia hora ao telefone — e muito resumidamente o senhor Marr é um bacano. Gajo de conversa fácil mas sem muitos ademanes, que sabe gozar consigo mesmo mas que se tem em boa conta, que claramente tem a cabeça cheia de música mas nunca soa demasiado académico a falar dela. A entrevista era suposto durar dez minutos e acabou ao fim de 40 — na boa passaríamos uma tarde com Johnny Marr, ao balcão de um bar, a malhar finos e conversar sobre discos.

Isto tudo para dizer que: ele riu-se. E deu troco.

“Sabes que mais? Estou preparado para admitir que sim, seria uma grande canção dos Smiths”.

“A sério?”

Yeap, não tenho problema com isso. Mas — há um mas. Sabes o que é que a Hi hello é?”

Nope”.

“É uma grande canção do Johnny Marr.”

[Ri-me.]

“É mesmo. Portanto, podia ser uma grande canção dos Smiths, mas se o fosse não seria uma canção melhor do que é. De modo que estou contente com ela assim”.

Há que admitir que takes guts para fazer uma declaração destas — e para um tipo se tornar vocalista a meio dos 50s depois de ter ouvido a sua guitarra servir de base para melodias cantadas por vozes tão carismáticas como a de Morrissey, Matt Johnson (The The) ou Bernard Sumner (Electronic), que pode não ser exactamente um virtuoso mas tem pinta.

O que se passa com os vocalistas é mais ou menos o que se passa com os futebolistas: aos oito anos vamos todos ser o melhor 9 da equipa, aos 12 vamos todos ser o 10 — e uns anos depois acabamos como defesa direito. Suplente. Sendo que ninguém quer ser Gary Neville. Com os músicos é igual: qualquer pessoa que pegou num instrumento ou trauteou uma melodia sonhou ser o Elvis — mas depois acabou como baterista. Ora, o que nunca acontece é, já em final da carreira, o Gary Neville tornar-se o 9 ou o 10 da equipa; o que nunca acontece é o baterista tornar-se o vocalista — excepto no caso de Phil Collins.

“Uma das razões que me tem levado a editar discos em nome próprio”, explica o homem que melhor tratou uma guitarra eléctrica desde Jimmy Page, “é que, como canto, não tenho de ficar à espera de outra pessoa para acabar uma canção, como acontecia com os Modest Mouse”. Lembram-se da vertigem de discos em catadupa que foi a carreira dos Smiths? Marr não mudou desde então: “Eu gosto de fazer muitos discos, de acabar as coisas depressa, e isso é mais fácil de conseguir sozinho”.

Esta era a parte um; a parte dois é assim: “Também não quero mais ninguém a cantar porque estas canções são a representação da minha visão e sou eu que sei o que quero — gosto de como soam e soam ao que eu tinha pensado”.

No tempo dos Smiths, Marr — que gostava de se deitar tarde — deixava um instrumental pronto e Morrissey — que gostava de acordar cedo — entrava às oito da manhã no estúdio e gravava a voz. Quando Marr acordava sabia que o que quer que o comparsa tivesse feito o ia deixar de boca aberta: “Eu nunca sabia o que esperar — podia fazer-me chorar e podia fazer-me rir. Podia ser sério e podia ser patético”.

Essa é a única coisa que permanece igual, desde que Marr passou a ser um frontman: “Ainda acabo um instrumental e depois é preciso pôr uma voz por cima”. Mas agora compõe “de maneira diferente — uma canção pode nascer de uma melodia de voz e só depois vou pôr a guitarra ou uma linha de baixo. Às vezes só tenho um refrão e tenho de inventar uma canção para o refrão. Tenho menos fórmulas, hoje”.

Como bom herdeiro da tradição britânica, gosta de se auto-elogiar: diz que é melhor músico hoje, diz que conhece mais música hoje do que há 40 anos, que sabe muito mais sobre compor hoje do que em miúdo, etc. Melhor exemplo: “Eu sei que é juvenil dizer isto, mas a minha banda, neste momento, é a melhor banda do mundo. Eu sei, eu sei: é juvenil dizer isto — mas eu adoro. E ainda quero ser o melhor vocalista do mundo ou, pelo menos, o melhor frontman com uma lead guitar, que é coisa que existe pouco”.

Call the Comet tem sido recebido como o melhor dos três discos a solo de Marr, o primeiro que soa a um disco sem pontas soltas — mas há nisto uma dose de simpatia: não há más canções mas só ocasionalmente o disco sobe a fasquia; e só por uma vez, na já mencionada Hi hello, nos é oferecida uma grande canção (embora uma canção como Day in day out também seja orelhuda).

Ele ainda é uma estrela pop. “E merecidamente. Ainda encho salas, todas as noites”. E gosta de o ser e faz por estar à altura: “Importo-me com esse estatuto, mas não quero ser uma estrela pop só para ser conhecido por coisa nenhuma — é só bom que o nosso trabalho seja apreciado. Quando uma sala inteira canta a nossa canção, toda a gente gosta disso. Quero ser famoso pelas razões certas, não por qualquer outra razão. Quero ser famoso pelas canções”.

Tem, pelo menos, conseguido manter uma audiência — ou até aumentá-la: “Os meus fãs, agora, são os os filhos dos meus antigos fãs”. Sobreviveu porque manteve “os pés na terra”, manteve “uma curiosidade e vontade de experimentar naturais” e também teve “a sorte de estar sempre rodeado das pessoas certas" — "e eu acho que sou bom a avaliar pessoas”. O que pode ou não ser lido como uma tirada contra Steven Patrick.

Digo-lhe que ele é um dos últimos que restam daquela época em que uma guitarra podia mudar a vida de um garoto idiota para todo o sempre, só porque um dia aquele eco de How soon is now saído hertzianamente do rádio encheu o seu quarto de garoto de uma febrilidade até então desconhecida, ruído e melodia fundindo-se numa beleza tão apurada que fazia crer que lá fora, no mundo, havia mais do que na pequenez que até então havíamos conhecido: podíamos ser miúdos pobres e burros de uma terra pequena, mas conhecíamos os Smiths.

“Estás errado, John. Tens filhos, John? O teu miúdo gosta de guitarras, John? Então ouve bem bem o que vou dizer: acho que os teus netos ainda vão ouvir guitarra. As guitarras iam desaparecer em 1993 e olha o que aconteceu”.

O que mudou, diz Marr, que também teve os seus dias (ou noites) de loucura, foi “o modo de vida do rock’n’roll — isso desapareceu, aquela coisa do Jim Morrison a destruir hotéis. O clima político e cultural mudou. O que aconteceu nos últimos anos, com a ascensão da comunidade LGBTI, etc — nada disso veio da minha geração, veio dos mais novos, que vêem o mundo de outra maneira e têm mais responsabilidades. E estou contente que tenha acontecido, o rock’n’roll era um mundo com muitos abusos e isso não é permitido para esta nova geração. Estes são tempos inclusivos”.

As guitarras não vão desaparecer, certo (dúbio, mas aceitemos a versão dele). E Johnny Marr, que está com 55 anos, vai continuar a fazer canções pop, tornar-se um artista folk, pousar a guitarra? (Hey, o Paul Simon acabou a carreira; Phil Collins — o Gary Neville da pop — também. Não é uma pergunta assim tão parva.)

“John, deixa-me fazer uma pergunta”.

“Força.”

“Vais deixar de ouvir canções?”

Nope.”

“Então, aí tens a tua resposta”.

“Como assim?”

“Comecei a pensar no que era uma canção quando era muito novo. ‘Oh, esta canção começa pelo refrão, não sabia que se podia fazer isto’, ‘Esta descida para um acorde menor provoca tristeza, vou tomar nota mental disto’. Mesmo antes de eu saber quem eu era já fazia isto. Eu cresci com as Ronettes, sabes aquela entrada do Be my baby, como te sentes quando ouves aquilo pela primeira vez? Eu sou um fã de música, John. E continuo a ser puto. Enquanto houver canções para escrever eu não vou a lado nenhum”.

Sabem aquela canção de uma banda inglesa dos anos 80, em que se cantava: ”But don’t forget the songs that made you laugh/ and the songs that made you cry”?

Uma boa parte dessas canções são dos Smiths. Não se esqueçam de quem pegou numa guitarra e as compôs.

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