A greve dos juízes e o seu Estatuto

A estratégia de Governo e oposição de pretender reduzir os protestos dos juízes a meras questões corporativas é, além de intelectualmente desonesta, muito perigosa.

Como era expectável, a anunciada greve dos juízes rapidamente pôs em marcha as máquinas de propaganda de Governo e oposição, preocupadas em reduzir tudo a dois assuntos – salários e legitimidade da própria greve, assim tentando fugir ao debate sobre o que realmente é essencial e motiva o protesto. Tudo seria muito simples, não fosse a importância do tema e a sua essencialidade para o funcionamento do sistema democrático de qualquer Estado.

Ao contrário dos estatutos de quaisquer outras profissões ou classes, o Estatuto dos Juízes é uma pedra estruturante de qualquer Estado de Direito democrático. Por isso começa desde logo por ter assento constitucional e não se esgota apenas numa lei – através do Estatuto dos Juízes se garante grande parte da independência do Poder Judicial, uma das pedras angulares de um Estado respeitador dos direitos dos cidadãos. É o Estatuto dos Juízes que dá a todos os cidadãos a certeza absoluta de que nos tribunais há magistrados total e absolutamente livres de qualquer ingerência dos demais poderes do Estado. A este propósito basta relembrar que o partido que atualmente forma Governo foi o mesmo que na sua anterior passagem pelo executivo quis englobar os juízes no regime de carreiras e vínculos da função pública, tendo recuado apenas quando o Tribunal Constitucional o proibiu, e que o maior partido da oposição é o mesmo cujo então líder, quando o Tribunal Constitucional vetou medidas aprovadas pelo Governo do qual era primeiro-ministro, disse que a solução seria “ter mais cuidado ao escolher os juízes”.

É por tudo isto que a estratégia de Governo e oposição de pretender reduzir os protestos dos juízes a meras questões corporativas é, além de intelectualmente desonesta, muito perigosa.

A indignação dos juízes com o processo de revisão do seu Estatuto começa logo pela forma como o poder político a tem encarado, sem qualquer dignidade e tratando-o como uma qualquer outra lei, com sucessivos avanços e recuos ao longo dos últimos anos, ao sabor das mudanças conjunturais de maiorias políticas e de arranjos parlamentares. Mas a revisão do Estatuto dos Juízes não é uma questão recente, muito pelo contrário. Há vários anos que os juízes vêm reclamando uma maior densificação (nomeadamente) constitucional do seu Estatuto, com a consagração na Lei Fundamental de garantias básicas de independência, assim colmatando o esquecimento a que o nosso legislador constitucional votou o Poder Judicial desde 1976: a proibição de reduções remuneratórias arbitrárias e unilaterais por parte dos demais poderes do Estado (garantia consagrada, entre outras, na Constituição dos Estados Unidos da América e defendida entre nós, por exemplo, pelo Prof. Paulo Rangel – insuspeito de ser um “sindicalista radical”); a existência de um sistema de determinação automática das atualizações de retribuição (porque, nas palavras do Tribunal Constitucional italiano, no acórdão de 08/10/2012 do processo n.º 223/2012, os juízes “não podem estar sujeitos a negociações e conflitos periódicos e sistemáticos com os outros poderes do Estado”, situação que levaria a uma perceção generalizada de submissão do Poder Judicial perante os demais poderes, diminuindo a sua independência e autoridade); a consagração inequívoca de que todos os tribunais, de todas as instâncias, são órgãos de soberania (o principal partido da oposição, agora muito indignado com o facto de titulares de órgãos de soberania poderem recorrer à greve, é o mesmo que há não muitos anos elaborou uma proposta de revisão constitucional na qual se previa que apenas os tribunais superiores seriam considerados órgãos de soberania, o que abriria a porta à instrumentalização dos tribunais de primeira instância por parte do Poder Executivo). Os juízes portugueses não reclamam nada de inédito ou de exagerado – tudo isto é há muito considerado essencial pelo Conselho da Europa e foi apresentado pela MEDEL perante a Comissão Europeia, nas Assises de la Justice que tiveram lugar em Novembro de 2013, como pontos essenciais de garantia da independência do Poder Judicial, que deveriam ser consagrados como regras mínimas comuns a todos os Estados da União Europeia.

Além disso, afirma o Governo que as únicas exigências dos juízes “que não foram atendidas” se prendem com “aumentos salariais”. É falso. Pretende-se apenas e só que seja garantida aos juízes a existência de uma carreira, questão que não tem a ver com a crise económica e financeira dos últimos anos, antes se arrasta há décadas e se prende com a imposição de um teto salarial que já três provedores de Justiça consideraram inconstitucional e recomendaram (infrutiferamente) a sucessivos governos que revissem. Um juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça português aufere uma retribuição anual que corresponde a metade da de um juiz em idêntica posição em Itália, dois terços da de um juiz da Holanda, Bélgica ou Chipre e três quartos da de um juiz da Áustria, França ou Espanha. Mais grave ainda, a diferença retributiva entre um juiz da primeira instância e um juiz de um Tribunal da Relação em Portugal é de cerca de apenas trinta euros líquidos, diferença essa que para um juiz do Supremo Tribunal de Justiça sobe apenas para 200 euros líquidos – ou seja, 40 anos de exclusividade absoluta nas funções de juiz e o exercício de funções no mais alto tribunal do país, proferindo decisões não suscetíveis de recurso nos processos mais complexos, são remuneradas com apenas mais 200 euros líquidos mensais. Recorra-se aqui mais uma vez ao paralelo com o que sucede na Europa: a média europeia é a de um juiz no final da carreira ter uma retribuição 1,9 vezes superior à do início, sendo que em países como a Bulgária, a França, a Itália e a Polónia esse aumento é de três vezes, o que é justificado nesses países com o facto de os juízes entrarem na carreira com uma média de 25 anos de idade e ali permanecerem durante cerca de 40 anos – situação em tudo semelhante à portuguesa.

Quanto aos que, ocupando ou tendo ocupado cargos governativos, se insurgem agora contra o facto de titulares de órgãos de soberania poderem recorrer à greve, muito se lamenta que só se recordem que os juízes têm essa qualidade para criticar o recurso à greve, mas já não para discutir o Estatuto com a dignidade devida a titulares de órgãos de soberania.

Aquilo de que os cidadãos podem ter a certeza é que daqui a dez ou 15 anos, encontrarão os juízes portugueses nos seus tribunais, a despachar e decidir processos, como sempre o fizeram com total exclusividade ao longo da sua vida – não os encontrarão em sociedades de advogados a fazer lobby junto dos seus anteriores colegas de governo ou de bancada parlamentar ou em altos cargos de empresas que anteriormente tutelaram ou que são dirigidas por ex-líderes do seu partido. E assim será, porque lutámos por ter um Estatuto dos Juízes que permita tal exclusividade e independência.

São estes, pois, os motivos que levam os juízes ao protesto. Tentar reduzir a questão a salários ou legitimidade da greve poderá ser muito útil às máquinas partidárias, mas é com toda a certeza um péssimo serviço à Democracia.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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