O mais decepcionante McQueen

Um filme calculado ao milímetro para ser “importante” — e por aí, “prestigiante” — no seu tratamento das questões mais centrais na discussão da vida pública americana contemporânea.

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Há um momento em Viúvas em que parece que Steve McQueen se lembra de que já foi (em Fome, em Vergonha) um cineasta arrojado e imune ao academismo ilustrador das “grandes causas”. É um plano estranhíssimo, totalmente alheio à gramática do resto do filme: duas personagens (a de Colin Farrell, candidato a vereador municipal por um bairro de Chicago, e a sua secretária) entram num carro, a câmara está montada no capot, o carro arranca e durante um tempo considerável ficamos ali, num travelling pelas ruas da cidade, a câmara em panorâmicas para a direita e para a esquerda, enquanto dentro do automóvel das personagens conversam numa espécie de off, a imagem delas tapada pelo pára-brisas escuro. No tempo que o plano dura (e é o melhor plano do filme), pensamos que Steve McQueen se está a querer ir embora do filme, e temos vontade de que vá mesmo, e nos leve com ele. Mas não, depois voltamos.

Voltamos a um filme que parece calculado ao milímetro (e não no melhor sentido da expressão) para ser “importante” — e por aí, “prestigiante”, oscarizável — no seu tratamento das questões mais centrais na discussão da vida pública americana contemporânea: questões de género, questões de raça, questões de uma organização política tendencialmente corrupta (e até, no pormenor que parece mais escusado e desnecessário na arrumação narrativa do filme, uma alusão à brutalidade racista da polícia americana). É um filme esmagado pelos seus temas, esmagado por uma dúbia ideia de “responsabilidade” que sufoca toda a vida que pudesse ter — não admira que, nesse tal plano, Viúvas pareça fugir de si próprio (e de facto, é um dos poucos momentos em que se sente alguma coisa a respirar).

Há duas linhas narrativas que se entroncam no filme de McQueen. Uma, é a história de um grupo de viúvas, etnicamente diverso, liderado por Viola Davis, que depois dos maridos ou namorados, membros de um gang de assaltantes, terem sido todos mortos num golpe que correu mal, tem que levar a cabo, na vez deles, um último “trabalho”, como forma de pagar uma dúvida. A outra, é a história de dois candidatos a vereadores pelo mesmo bairro de Chicago, um branco, irlandês, duma família “aristocrática” há gerações ligada à política municipal, outro negro, do “lado errado” do bairro, ligado a negócios e tráficos obscuros (por este lado há uns pozinhos de The Wire mas, e não diremos isso de muitas séries, qualquer episódio escolhido ao acaso é melhor do que todo o Viúvas). Há boas ideias que McQueen estraga por excesso de “exposição”, não vá alguém não reparar: por exemplo, o casamento de Viola Davis e Liam Neeson — que poderoso seria se fosse apresentado casualmente, em jeito matter of fact, mas não, tem que haver incontáveis chamadas de atenção para a “inter-racialidade”, e McQueen tem mesmo que incluir planos, muito united colors of Benetton, das mãos entrelaçadas dos dois, o contraste das peles a tornar-se slogan visual.

E o filme arrasta-se nisto, numa narrativa-puzzle a encaixar todos os pontinhos, cheia de derivas ilustrativas (os backgrounds familiares de cada uma das viúvas), rumo a alguns twists que se adivinhavam à légua e são, por isso, ainda mais exasperantes quando se confirmam. É o filme mais pesado que McQueen já fez, certamente o mais programático, indubitavelmente o mais decepcionante.

Mas, dito isto, até há ainda uma outra coisa que vale a pena ver: as poucas cenas com Robert Duvall (é ele o patriarca, duma ambiguidade inclassificável, da família irlandesa), na sua majestade arfante, a lembrar que de Niro e Pacino ainda têm que esperar que o trono vague, e que ele é o maior actor de cinema americano vivo. Sempre que Duvall toma conta do ecran, também parece que estamos noutro filme — e como acima ficou explicado, essa é a melhor sensação que se consegue ter em Viúvas.

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