Um fascista eleito não é um democrata

Ao contrário do que eu próprio pensava, existe ainda no nosso país um significativo perímetro da direita cujas convicções democráticas são, no mínimo, debéis.

1.Se levarmos em consideração as afirmações proferidas nas últimas semanas por alguns dos principais expoentes do pensamento político da direita portuguesa, seremos levados a concluir que Hitler, afinal de contas, não era uma personagem assim tão repulsiva quanto a posteridade histórica o catalogou, dada a circunstância de ter obtido excelentes resultados eleitorais e beneficiado do apoio explícito de cidadãos alemães que, em bom rigor, não podiam ser considerados fascistas. O cabo-de-guerra austríaco foi, obviamente, tudo aquilo de que foi justamente acusado: um ditador perverso, anti-semita, antidemocrata, antiliberal e anti-humanista. Ocorre, porém, que suscitou adesão eleitoral, o que, na perspectiva de alguns escribas contemporâneos, ameniza o seu lado demoníaco e compele a procurar uma justificação aceitável para o seu sucesso. Se seguirmos até ao fim a linha de pensamento prosseguida por tais analistas, seremos levados a concluir que os responsáveis pelas monstruosidades nazis foram precisamente todos os demais, isto é, todos aqueles nunca se reclamaram do nazismo. No fundo, Hitler terá sido uma pobre vítima dos seus encarniçados adversários, que o teriam gerado, promovido e legitimado. Esses é que deviam ter sido julgados em Nuremberga, acusados do nefasto crime de terem criado Hitler pela razão singela de o terem combatido.

Nada me move contra a tentativa de compreensão de qualquer tipo de fenómeno histórico, incluindo aqueles que se revestem de características execrandas. Tenho contudo a noção de que há uma fronteira ténue entre o trabalho de compreensão e a tentação da justificação. Julgo que no caso das recentes eleições brasileiras essa linha foi várias vezes ultrapassada. Na desmesurada ânsia de atacar a esquerda brasileira, e em particular o Partido dos Trabalhadores, pessoas habitualmente sóbrias produziram análises e comentários próprios de um estado de adiantada embriaguez ideológica. Prova disso foi a forma como adulteraram grosseiramente as posições assumidas por quem formulou críticas à personalidade agora eleita para a presidência do Brasil. A falácia mais recorrente consistiu em salvaguardar o carácter não necessariamente fascistóide dos eleitores de Bolsonaro. Como se alguém alguma vez tivesse afirmado tal coisa. A falácia, no seu primarismo, enuncia-se de um modo muito simples: quando se acusa Bolsonaro de inclinações fascistas está-se automaticamente a apelidar de fascistas todos os seus eleitores, isto é, no presente caso, a maioria dos votantes brasileiros. Convenhamos que como truque é infantil e como tese comporta uma ideia muito perigosa. Por contraponto à noção de que ao votar num protofascista um cidadão se torna automaticamente um defensor do fascismo insinua-se que um protofascista eleito com votos de cidadãos desprovidos dessa inclinação se transforma imediatamente num democrata. Bolsonaro, mau grado todas as suas afirmações detestáveis, estaria absolvido pela votação que obteve. Esta posição é a todos os títulos indefensável, expurgando da democracia uma componente que lhe deve ser consubstancial: a de um Estado de direito que escude as liberdades públicas e privadas fundamentais.

Não deixa porém de ser curioso que uma parte expressiva da direita portuguesa não só não tenha esboçado a mais ligeira crítica a Bolsonaro como até se não tenha preocupado em esconder algum inusitado entusiasmo com o seu sucesso. Isso revela que, ao contrário do que eu próprio pensava, existe ainda no nosso país um significativo perímetro da direita cujas convicções democráticas são, no mínimo, debéis. É certo que houve excepções do centro e do centro-direita, como Francisco Pinto Balsemão, Freitas do Amaral, Paulo Rangel, Rui Moreira, João César das Neves e alguns outros. Houve mesmo quem se destacasse por uma invulgar coragem, como foi o caso de David Dinis. No resto, o que se notou foi indiferença ou complacência, senão mesmo algum subterrâneo contentamento.

João Miguel Tavares, cronista que leio frequentemente, e que até começou por declarar que votaria em Haddad e por rotular Bolsonaro de fascista, perdeu a razão, para, investido de um furor inexplicável, pronunciar uma fatwa definitiva: quem quer que tenha tido qualquer tipo de cooperação com José Sócrates, fosse no Governo, no Parlamento ou na mais obscura viela deste país, estaria condenado a uma espécie de ostracismo eterno. Por isso, lembrando a minha pretérita condição de líder parlamentar do PS, determinou a minha morte cívica e política, considerando-me moralmente e politicamente inapto para a formulação de qualquer consideração sobre o mais remoto acontecimento ocorrido ou a ocorrer no meu tempo de vida. Já na óptica de tão singular autor nada há a apontar àqueles que se não importam de exibir uma grande condescendência com Bolsonaro, desde que tenham invectivado devidamente o antigo primeiro-ministro português.

2. A ministra da Cultura tem vindo a ser violentamente atacada pelo simples facto de ter declarado o óbvio: que há coisas que com o passar dos tempos deixam de se colocar no domínio do gosto e passam para um outro patamar, que tem que ver com os valores civilizacionais alcançados. Na Roma antiga, as lutas dos gladiadores entusiasmavam a populaça, apelavam à representação artística, suscitavam avaliações de ordem estética. Nessa época, esse assunto poderia ser tratado no domínio do gosto. A humanidade, entretanto, evoluiu, e o grau de exigência civilizacional apurou-se. Hoje, nem a ética nem a estética se permitiriam conviver com tal celebração da violência. Por uma razão muito simples: subimos de patamar civilizacional. Por muito que custe aos defensores das touradas, é isso mesmo que está hoje em causa. Não por acaso, tão degradante espectáculo suscita a repulsa de praticamente todos os povos europeus. E não venham com a conversa fiada de que é a globalização uniformizadora ou a obediência a uma certa normalização comportamental. Não, não é nada disso. É apenas e tão-só, como corajosamente afirmou no Parlamento a ministra da Cultura, uma questão de civilização. E não, não tem apenas que ver com a nossa relação com os animais, tem sobretudo que ver com a relação connosco mesmos. Não se trata de animalismo, trata-se mesmo de humanismo.

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