Madeleine Albright: “Não podemos salvar a democracia sem confiança no julgamento dos cidadãos democráticos”

Primo Levi disse que “todas as eras têm o seu fascismo”. No livro Fascismo – um alerta, a antiga secretária de Estado americana quer ser alarmista de propósito para explicar que há ameaças reais à democracia.

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Joshua Roberts/Reuters

O novo livro de Madeleine Albright tem tido um enorme sucesso nos Estados Unidos, mas também em Portugal, onde está traduzido e editado pelo Clube do Autor. O nome é ele próprio um desafio Fascismo – um alerta. A autora ainda hoje é bem conhecida de muita gente fora da América porque foi durante quatro anos secretaria de Estado de Bill Clinton, depois de ter sido sua embaixadora junto das Nações Unidas.

Foi a primeira mulher a ocupar este cargo. Professora universitária, duas vezes refugiada – primeiro, quando a Checoslováquia foi ocupada por Hitler em 1938; depois, passados dez anos, quando o Partido Comunista tomou o poder em Praga. Da primeira vez, para a Inglaterra. Da segunda e definitivamente para os Estados Unidos. O seu pai era diplomata. Seguiu uma carreira académica na América. Ela também. Ainda hoje dá aulas em Georgetown.

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O seu livro, como ela própria diz, é um grito de alerta nestes tempos dominados pelo ódio. Apaixonante, porque nos guia através da ascensão ao poder de líderes como Mussolini, Hitler, mas também Chávez ou Viktor Orbán, Putin, Kim Jong-un ou Erdogan. Ou, finalmente, reflecte sobre os riscos que comporta a eleição de Donald Trump. “A opinião que Trump tem sobre os Estados Unidos é sombria”. Quanto a ela, e numa entrevista através de email, declara-se uma “optimista que se preocupa muito”.

Respondendo a algumas críticas sobre um possível excesso de alarmismo do seu livro, disse que a sua intenção era precisamente “ser alarmista”. O que quer dizer?
A minha esperança, ao escrever este livro, é encorajar as pessoas a falar e a agir em defesa dos princípios que tornam possível o governo livre e aberto. Creio que é mais fácil que isso aconteça se reconhecermos as consequências da inacção e do silêncio. Se queremos que alguém saia da cama de manhã, utilizamos um relógio de alarme. Se queremos que a democracia seja saudável, os cidadãos democráticos têm de estar conscientes das ameaças.

Podemos comparar o século XX com o que se está hoje a passar no mundo? Sobretudo, com o período que se seguiu à Grande Depressão e que levou à guerra? Também se verificam muitas diferenças.
Muita coisa mudou nos últimos 80 anos; as redes de protecção social são mais fortes. No entanto, um olhar pelo mundo mostra-nos que não eliminámos as forças que podem produzir o fascismo, incluindo o nacionalismo, e a vontade de usar a violência para impor os privilégios de alguns à custa de outros. Nas palavras do sobrevivente italiano do Holocausto Primo Levi, “todas as eras têm o seu fascismo”.

As suas origens familiares estão em Praga. Foi por duas vezes refugiada: primeiro dos nazis, depois dos comunistas. Foi bem recebida nos EUA. Subiu até ao cargo mais importante da Administração a seguir ao Presidente. Hoje, uma maioria de americanos manifesta-se contra a imigração e contra os refugiados. O mesmo se passa na Europa. É um sintoma dos perigos para os quais adverte no seu livro?
Sim. Uma das principais causas das perturbações na Europa e noutros sítios é a chegada de um número recorde de migrantes e refugiados e a reacção das pessoas perante uma questão muito complexa e emocional. É um desafio que só pode ser abordado com racionalidade, equilíbrio e através de um debate razoável. Os países têm o direito de controlar as suas fronteiras, mas as pessoas têm o direito a ser tratadas com decência e respeito. Infelizmente, a questão está a ser explorada por alguns políticos, que tentam fazer avançar os seus próprios interesses encorajando-nos a agir, não através do bom senso, mas a partir do medo e do ódio.

Entende as razões pelas quais os países da Europa Central e de Leste parecem mais vulneráveis ao nacionalismo que as velhas democracias ocidentais? Viktor Orbán quer liderar uma nova frente de democracias iliberais.
A minha resposta tem duas partes. Primeiro, não creio que nenhum país esteja imune aos perigos colocados pelo nacionalismo extremo. Na Europa, muitos países foram fundados na base de uma identidade nacional que foi acentuada para justificar a separação de impérios – Otomano, Austro-húngaro, Russo. Outros países tiveram os seus próprios impérios. O nacionalismo não está limitado a um pequeno número de Estados.

Em segundo lugar, o problema de tentar formar uma aliança de governos nacionalistas é que eles acabarão inevitavelmente por chocar uns com os outros: o nacionalismo húngaro com o nacionalismo checo, por exemplo; os russos e os polacos nunca concordaram em nada ao longo da sua história. Por isso, os esforços de Orbán para espalhar a democracia iliberal assentam menos na partilha de valores do que na partilha dos medos. O seu primeiro objectivo é manter-se no poder metendo medo às pessoas.

Nas democracias maduras, as pessoas estão descrentes dos partidos tradicionais. Deixaram de confiar neles, pelo menos tanto como confiavam anteriormente. É este o maior problema que as democracias enfrentam hoje?
Sim. Hoje em dia e por várias razões, é difícil aos governos satisfazer as expectativas da opinião pública. Por isso, muitos cidadãos sentem-se insatisfeitos com os partidos tradicionais e dão o seu voto a alternativas que são novas ou extremas. O que, muitas vezes, conduz a governos que acabam por ser ainda piores.

Estamos a ver a emergência de líderes antidemocráticos, “homens fortes”  que se afirma com uma linguagem brutal. Duterte, Putin, Xi, alguns líderes africanos. Agora vemos a ascensão de Jair Bolsonaro no Brasil. No seu livro, dá uma grande importância às características e às histórias pessoais de gente como Mussolini, Hitler, Putin, Chávez… Porquê? Para enfatizar que não se trata apenas de ideologia?
Sim. Podemos encontrar tendências fascistas em quase todas as partes do espectro político, incluindo o centro. Estaline e Hitler, por exemplo, eram ideologicamente opostos mas empregavam muitas das mesmas tácticas e formaram, durante algum tempo, um pacto de não-agressão. Muitos dos métodos de Mussolini foram imitados por Chávez. Muitos líderes tomam hoje como modelo Putin.

Também disse que fascismo não era uma ideologia, mas um processo. Normalmente, tendemos a considerar o fascismo e o comunismo como duas ideologias totalitárias. Qual é a diferença que quer sublinhar?
A ideologia comunista é contra a religião, contra o capitalismo e assenta na ideia de um Estado administrado apenas pelos trabalhadores. Mussolini favorecia uma economia gerida [pelo Estado] na qual os líderes das corporações e os trabalhadores tomavam as decisões em conjunto; não funcionou. O nazismo era menos um sistema económico do que uma desculpa para afirmar a supremacia racial. Aqui tem a resposta.

A democracia exige racionalidade e pode ser até um pouco aborrecida. O populismo e o nacionalismo apelam às emoções e podem galvanizar as pessoas oferecendo-lhes ideias simples e “culpados” para os seus problemas. Em momentos em que tudo tende a parecer incerto e questionável, como se pode ir contra estas ideias tão básicas como perigosas?
Percebo as premissas da pergunta mas não estou de acordo com elas. Para mim, o processo democrático, através do qual as pessoas com ideias muito diferentes são capazes de atingir um terreno comum através do processo de debate e de compromisso, é absolutamente entusiasmante. Em contraste, não há nada de menos excitante do que a conformidade rígida imposta por um ditador – temos de ter fé na capacidade das pessoas para resistir às promessas vazias e para as mentiras perigosas dos demagogos. Não podemos salvar a democracia sem confiança no julgamento dos cidadãos democráticos.

Há dez anos, deu-me uma entrevista em Lisboa e disse que “tínhamos de “restaurar o bom nome da Democracia”. Havia já nessa altura um problema? A Democracia está a desvanecer-se como Grande Ideia? O regime chinês pode aparecer como alternativa para os países do mundo em desenvolvimento?
A democracia sempre enfrentou desafios. Há dez anos, estávamos a braços com o mal causado pela violência sectária no Iraque, que alguns atribuíam a uma tentativa pouca avisada de impor a democracia num país. Continuo a acreditar que a maioria das pessoas quer que os seus países avancem para o objectivo democrático da liberdade e da justiça para todos. O modelo chinês é atractivo para os líderes autocráticos que querem preservar o seu próprio poder, mas não tanto para os partidos da oposição ou para os participantes da sociedade civil

Donald Trump é o primeiro Presidente americano nos tempos modernos que é contra a integração europeia e a aliança transatlântica. É uma realidade temporária que será ultrapassado quando Trump sair da Casa Branca?
Eu espero bem que sim. Acredito firmemente na aliança transatlântica.

Diz que não pensa que Trump seja fascista. Penso que ninguém pensa. Mas a verdade é que ele está a destruir a ordem liberal criada pelos EUA e a provocar profundas divisões na sociedade americana. Que riscos representa? Aparentemente, parece mais perigoso para a ordem liberal do que para a democracia americana, com os seus checks and balances.
Os checks and balances do sistema americano podem limitar a capacidade da actual Administração de causar estragos permanentes. Mas, mesmo assim, estou preocupada com as feridas de curto prazo que está a abrir nos nossos tribunais, no Congresso, na imprensa e no processo eleitoral. Muito depende do tempo em que a situação presente durar. O mesmo é verdade no que respeita ao mal que está a ser feito à ordem liberal internacional. A ausência de uma liderança americana construtiva é prejudicial, mas sê-lo-á menos se for temporária.

Qual devia ser a resposta dos democratas a Donald Trump? Há também alguma semelhança com os anos anteriores à II Guerra, nomeadamente através da polarização política. Os republicanos estão a ir para a extrema-direita e os democratas para a esquerda socialista.
Penso que ainda se estar para ver para onde é que vão. Do meu ponto de vista, os americanos dos dois partidos e também os independentes devem apoiar candidatos que queiram voltar a unir o país e que encorajem o Congresso a enfrentar problemas comuns de uma forma civilizada e construtiva. Não estou de acordo com os que ridicularizam os seus opositores políticos ou que pensam que a resposta para qualquer questão é apenas gritar mais alto do que o adversário.

Nos EUA e também na Europa há hoje uma discussão sobre os perigos das chamadas politicas identitárias. Não apenas do “nós contra os outros”. Mas também sobre as minorias – afro-americanos, hispânicos, mulheres, homossexuais, etc.. Alguns autores dizem que que este tipo de políticas quebra o laço de cidadania que une toda a gente. Como vê este debate?
Esse debate é disparatado. Todos nós temos atributos individuais que nos ajudam a definir-nos e que nos podem dar um sentimento especial de afinidade com aqueles que partilham as nossas características. Trata-se de um factor que unifica e não que divide. Também temos um papel a desempenhar nas comunidades e nas nossas nações. Isso é também um factor unificador. O génio da democracia representativa é que reconhece estas realidades e cria os meios para resolver conflitos de forma livre e pacífica ao longo do tempo. Nada disto impedirá as pessoas de ter discussões, mas isso é normal. Os problemas começam quando deixamos de ter a liberdade para argumentar.

Disse recentemente que vivemos “tempos tumultuosos em que o ódio parece dominar tudo”. Está muito preocupada
Estou.

Tenho uma questão para a qual não consigo encontrar uma resposta: como é que um país que elegeu Obama consegue eleger logo a seguir Trump? Talvez me possa ajudar?
Gostaria de poder, mas não creio. Fiquei espantada com o resultado das últimas eleições há dois anos e continuo espantada. A explicação mais lógica é que ambos, Obama em 2008 e Trump em 2016, foram vistos como candidatos que representaram a mudança. Se as pessoas se sentem infelizes com o status quo, uma boa parte delas sentir-se-ão tentadas a votar em alguma coisa diferente, independentemente da ideologia ou do partido. Isto é verdade, mesmo que Trump e Obama representem mudanças completamente diferentes.

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