“A noção de princesa contém nela o poder de ser vítima de abuso sem consentimento”

Gabriela Moita reflecte sobre a forma como o “débito conjugal”, previsto no direito civil, e que se traduz na obrigação de cada um dos cônjuges manter relações sexuais com o outro, ajuda a criar vítimas e agressores de violência sexual.

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Nelson Garrido

A partir das histórias sobre princesas adormecidas que são resgatadas com um beijo, Gabriela Moita explica como é que o ethos social, que tem no sexo uma espécie de obrigação compulsória para homens e mulheres, ajuda a criar vítimas e agressores.

Como é que se arruma, no meio desta discussão, polémicas como a que se desencadeou a propósito da campanha antitabágica em que uma mãe chamava “princesa” à filha e que foi vista como um contributo para a perpetuação de estereótipos de género?

O que vejo aqui de comum é a desigualdade de género. As princesas são frágeis, delicadas. São factores que não são factores de vencer. E, neste sentido, há uma rigidificação do papel. Porque, de facto, as princesas até são violadas. Então a Bela Adormecida? Ela não consentiu o beijo que lhe é dado! Nós temos contos belíssimos que, de facto, fomentam tudo isto. As princesas são estimuladas pelos príncipes.

E ensinadas a adoptar um papel passivo?

E que o corpo delas pode ser usado sem elas consentirem. É ele que vem e a beija e transforma a vida dela através do beijo e ela não foi tida nem achada, estava de facto adormecida. Isto depois vai legitimar que os juízes considerem que a violação não foi muito grave porque a senhora tinha perdido a consciência. Portanto, a noção de princesa contém nela o poder de ser vítima de abuso sem consentimento. O corpo delas não precisa de dizer nada. São histórias belíssimas que todos ouvimos na infância. Isto está tão bem montado que todos nós estamos sempre a pisar em armadilhas cor-de-rosa. E é através desta subtileza da nossa educação que nós nem percebemos quando estamos a fazer manutenção deste mesmo sistema.

E como se faz a desconstrução disto?

Faz-se nas famílias, faz-se na escola com os textos. Faz-se com intencionalidade, faz-se a saber que isto está na trama da nossa cultura e está na trama de tal maneira que nós nem o vemos. E não vamos destruir isto em três tempos. Estamos a puxar fios, são conquistas que vamos fazendo. Quer um exemplo de uma conquista extraordinária? O divórcio. Foi extraordinário, mas teve como objectivo manter o casamento. O divórcio aparece nalguns países da Europa quando aparece a primeira grande vaga do feminismo que começa a pôr em questão a instituição casamento. E, a partir daí, foi preciso abrir uma porta de saída para que não rebentassem com a instituição. Foi uma coisa óptima, porque permitiu que as pessoas deixassem de viver às vezes em situações de tortura, mas visou preservar a instituição. Ou seja, há sempre ali qualquer coisa que está a ser feita para parecer que muda sem que nada mude.

Poder-se-á estar aqui a criar um respiradouro qualquer em relação os direitos das mulheres só para permitir manter o status quo

Se recuarmos no tempo, aos momentos em que parece que houve uma grande mudança, percebem-se os casos em que parece que houve uma grande mudança para não haver mudança nenhuma. Quando a homossexualidade passou de crime a doença, parecia que finalmente tinha havido um respeito pelas pessoas, ora o respeito é adoecê-las?

Vê algum risco de higienização dos relacionamentos entre pessoas?

Há esse risco e parece-me que há esse aproveitamento. Quando ouvimos tantas pessoas a atacar as vítimas – de um lado e do outro, quer as vítimas de abuso quer de falsas acusações – e quando vemos todos estes comportamentos sexuais a ser atacados, é claro que isto está a ser aproveitado para determinar o que se deve e não deve fazer. Para novamente pôr as pessoas em alerta e a dizer: “Pois, se subires ao quarto estás a oferecer-te." Isto não pode acontecer. A sedução é uma coisa que tem direito a acontecer entre duas pessoas até uma delas dizer “não quero mais”.

Mas há efectivamente o risco de isto ser aproveitado por uma visão puritanista que tentará censurar os comportamentos que possam levar a: não se olha, não se usa calções, não se bebe álcool, isto é, a pessoa tem que se comportar de maneira a não provocar o desejo do homem. E a visão do homem como ser que reage a impulsos e que não se consegue controlar é grave. E, portanto, o risco é de todos nós eventualmente lá em casa começarmos a dizer ‘Cuidado, não faças isso’. E nós não podemos manter esta prática de evitarmos que os nossos adolescentes sejam quem são porque há uns que não se conseguem controlar. Não podemos continuar nesta cultura que alimenta este descontrolo dos impulsos. Aliás, estas posições de higienização e de controlo dos comportamentos acontecem mesmo dentro de uma instituição como é o casamento, onde o abuso era não só legitimado como quase obrigatório. Sobretudo o abuso das mulheres. O “débito conjugal” era uma obrigação, há textos jurídicos que defendiam esta coisa espantosa: ‘Não é preciso ter em conta o desejo nem é preciso ter em conta o prazer, o que é importante é que ele aconteça'.

E isto retira à mulher o direito de dizer não?

À mulher e ao homem. O que acontecia na nossa cultura era o pressuposto de que o homem está preparado para desejar sempre e, lá está, essa é outra agressão. A relação sexual no casamento até então, e ainda hoje de alguma forma, é compulsória, é uma obrigação. Isto é o Estado a legitimar os abusos dentro de uma instituição que é o casamento porque, se recuarmos na história, lembrar-nos-emos que as relações sexuais deviam existir, não era só dentro do casamento, mas obrigatoriamente dentro do casamento. Isto é a obrigação do abuso. É a construção de abusadores. É esta nossa organização cultural a criar o abusador e a vítima ao mesmo tempo.

O sexo enquanto imposição.

Sim, esta obrigação compulsória é agora para uns e outros. Enquanto a mulher obrigatoriamente tinha que estar ao serviço, o homem tinha obrigatoriamente que a atacar, numa espécie de agressividade compulsória. O agressor é agredido também muitas vezes por este ethos social, esta forma de pensar que a nossa cultura alimenta.

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