Bolsonaro, o regresso ao passado no país do futuro

Elegendo Bolsonaro, o Brasil suspende por tempo indeterminado a sua eterna condição de “pais de futuro”, como o descrevia Stefan Zweig e mergulha na sombra do infeliz passado que o tolheu entre 1964 e 1985.

Era certo e sabido que Jair Bolsonaro iria ganhar a primeira volta das Presidenciais brasileiras, mas só com alguma imaginação se poderia conceber o terramoto político que devastou a democracia brasileira no passado domingo. O espaço democrático vai ter de aprender a lidar com um presidente que a cada palavra e a cada acto rasga a Constituição e os compromissos do regime. E vai ter também de encontrar um antídoto para salvar o país do perigo da autocracia fermentada no ódio e nas fracturas sociais. Ora, é aqui que está o problema maior do Brasil: com dois dos três partidos cruciais (o PSDB e o MDB) dizimados pela venalidade e pela incompetência, com o PT preso às suas promessas incumpridas e às teias da corrupção que montou, e com as hostes da extrema-direita reforçadas no Congresso e nos estados federais, a democracia brasileira arrisca-se a entrar num longo e penoso estado de coma.

A quatro pontos percentuais da vitória na segunda volta, Bolsonaro e o extremismo de tonalidade fascista que urdiu e fez crescer são os donos do futuro. Como bactérias, desenvolveram-se num corpo debilitado pela corrupção, pelo medo e pelo ódio e estão agora em condições de tomar o poder. Esperar que deste quadro político nasça um regime saudável e pronto para sanar os imensos males do país é pura ilusão. Bolsonaro, como todos os autocratas, vai falhar antes de se servir das suas falhas para dar o salto em frente que ele e os seus apaniguados não se coibiram de enunciar: a supressão das liberdades, direitos e garantias da Constituição de 1988. Não digam que ele mentiu.  Ele sempre disse ao que ia e o que disse anuncia uma mudança de regime.

Bolsonaro é a expressão da vontade maioritária da população brasileira e o combate à sua mensagem e ao seu programa não podem dispensar as regras da oposição em democracia. Também aqui o pessimismo tem palavra. Bolsonaro será um presidente com fortíssimo apoio popular. O Brasil que o promete eleger não é apenas aquele Brasil enlevado pela herança horrível do esclavagismo, que odiou a concessão de direitos laborais às empregadas domésticas e se escandalizou quando a população dos bairros começou a viajar de avião. Nem apenas um Brasil de massas fanatizadas pelo desespero. Bolsonaro é devotado pelas elites do sudeste rico e pelas classes médias dos subúrbios, por gente culta, inteligente e “normal” e conquistou essa condição por ser o homem que lhes ofereceu a demolição do sistema.

Para o travar, o espaço democrático terá de ser cuidadoso. É mais fácil combater os rostos de um poder usurpado do que os de um poder eleito. O Congresso, onde o mais que provável próximo presidente terá pouco apoio, terá uma palavra a dizer - mas as suas duas câmaras perderam solenidade e poder depois da história mal contada que afastou Dilma. O sistema judicial terá de aplicar a lei e a lei prescreve a igualdade racial, a igualdade de género, a liberdade de expressão ou o enquadramento legal da violência do estado (da polícia e das forças armadas), princípios que a verborreia diária do ditador em construção recusa – mas, após o sucesso da operação Lava Jato, a Justiça parece por vezes ter-se tornado uma feira de vaidades. A imprensa, por fim, terá de continuar a escrutinar o poder político e a denunciar os seus abusos – mas a imprensa paga hoje a factura da sua arrogância e não parece ter poder para influenciar coisa nenhuma.

Idolatrado por um país exausto, desesperado e descrente na classe política que fez da mentira programa e da cleptocracia modo de vida, Bolsonaro está ainda longe de dispor do poder suficiente para restaurar os horrores do Acto Institucional 5, que extremou a ferocidade da ditadura militar. Mas tem motivos redobrados para celebrar o coronel Brilhante Ustra, responsável pela tortura de centenas de oposicionistas, ou os porões da DOPS, o horrível santuário da repressão e do assassínio de oposicionistas. Elegendo Bolsonaro, o Brasil suspende por tempo indeterminado a sua eterna condição de “pais de futuro”, como o descrevia Stefan Zweig e mergulha na sombra do infeliz passado que o tolheu entre 1964 e 1985. Por muito insuportável que hoje seja a vida dos brasileiros (e é-o para todas as classes), vale a pena ter a noção de que com Bolsonaro só pode ficar pior. Os autocratas ou, na sua pior versão, os ditadores nunca foram remédio para problema nenhum.

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