Só os alunos conseguem que os professores ainda tenham ânimo

O Governo aprovou o diploma que consagra a recuperação de apenas dois anos, nove meses e 18 dias do tempo de serviço dos professores que esteve congelado. BE e PCP pedem a Marcelo para não promulgar. Sindicatos dizem que é uma “declaração de guerra”. Esta sexta-feira é dia de manifestação nacional, em Lisboa.

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Fátima Gomes é professora de Português há 20 anos Adriano Miranda
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Isabel Le Guê estreou-se na carreira docente há 34 anos; em 14 esteve como directora Andreia Patricarca
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Filipe Silva está na profissão docente há 15 anos Miguel Manso

“Agastada.” É assim que Fátima Gomes, professora de Português da Escola Secundária de Barcelos, descreve o modo como se sente neste início de ano lectivo, que começou como o anterior acabou: com os professores em protesto para exigir a contabilização do seu tempo de serviço que esteve congelado (nove anos, quatro meses e dois dias) e o Governo a não ir além da recuperação de dois anos, nove meses e 18 dias.

Foi este período de tempo que acabou inscrito na lei, com o diploma que o estipula a ser aprovado pelo Conselho de Ministros nesta quinta-feira, véspera de mais uma manifestação nacional convocada pelos sindicatos de docentes para esta sexta-feira, quando se assinala o Dia Mundial do Professor.

Reagindo a esta decisão, o Bloco de Esquerda e o PCP já anunciaram que, caso o diploma seja promulgado pelo Presidente da República, a quem apelaram para não o fazer, irão solicitar a sua apreciação parlamentar, já que consideram que o decreto-lei viola o que se encontra estipulado na Lei do Orçamento do Estado para 2018 sobre a contagem do tempo de serviço que esteve congelado.

Para os sindicatos de professores, o que o Governo fez nesta quinta-feira foi “uma declaração de guerra”, que terá resposta na manifestação desta sexta-feira.

Fátima Gomes é um dos três docentes a quem o PÚBLICO pediu um testemunho sobre o modo como estão a viver este início do ano lectivo e o que é continuar a ser professor com tudo o que se tem vindo a passar entretanto. Estes depoimentos foram recolhidos antes de ter sido anunciada a decisão do Governo. Mas a verdade é que nenhum deles parecia ter grandes expectativas quanto a outro desfecho.

“Sabia já de antemão que o confronto com o Governo iria continuar e, francamente, estou cansada destes confrontos”, desabafa Fátima Gomes. É esta a razão pela qual se sente “agastada”. Mas não é a única: “Seria bonito para os meus colegas dizer que acredito que vai haver uma mudança positiva, mas na verdade não tenho expectativa alguma de que isso aconteça.”

Por isso afirma que fez greve nesta quinta-feira, quando as paralisações regionais dos professores, iniciadas na segunda-feira, chegaram ao Norte do país, e que também o fez no final do ano lectivo, quando decorreram as greves às reuniões de avaliação, “mais por convicção pessoal na defesa de um princípio, do que por crença numa mudança efectiva”. Nesta sexta-feira não estará na manifestação por “não ver ganhos” nesta acções, que entretanto se “banalizaram”.

Também Isabel Le Gué, professora de Inglês na Escola Secundária Rainha Dona Amélia, em Lisboa, diz que apesar de compreender “as razões apontadas pelos sindicatos”, não se sente “motivada para esta forma de luta, neste momento, nem para o diálogo de surdos a que se está a assistir”.

Voltar à sala de aula

No final do ano lectivo passado, Isabel Le Gué, que é professora há 34 anos, terminou um “longo exercício de funções” como directora da Escola Secundária Rainha Dona Amélia, que tinha sido iniciado em 2003 e em que se distinguiu também por ser uma voz crítica às políticas seguidas pelo Ministério da Educação, nomeadamente a partir do mandato de Maria de Lurdes Rodrigues. Explica que abandonou estas funções porque foi seu “desejo voltar à sala de aula” — “Voltar àquela que foi a minha profissão de sempre.”

E como está a correr? Esta professora não resiste a fazer um “trocadilho” com o modo como sindicatos e Governo têm descrito os intervalos de tempo para efeitos de progressão na carreira: “14 anos, três meses e 29 dias depois de ter como que ‘hibernado’, acordei incólume para o encantamento que sentimos em início de carreira: o fascínio da relação única que estabelecemos com cada aluno, com cada turma; o privilégio que é ver aquele brilho no olhar jovem e cheio de expectativas dos nossos alunos; o desafio constante que é o acto de ensinar e de aprender.”

Nesta sexta-feira, Filipe Silva, docente de Matemática e de Ciências Naturais no Agrupamento de Escolas Eduardo Gageiro, nos arredores de Lisboa, estará presente na manifestação por “concordar com as reivindicações apresentadas”. As mesmas que em 2017/2018 levaram a uma série de greves e duas manifestações nacionais.

Filipe Silva lembra-se de “algumas discussões na sala de professores, ocorridas então, acerca do que se poderia fazer, se a greve seria a melhor forma de manifestar a nossa posição”. “As opiniões divergiam, mas o sentimento de injustiça, esse era quase consensual. Injustiça por vermos ‘desaparecer’ mais de nove anos de trabalho, injustiça pelas informações erradas transmitidas para a opinião pública”, aponta.

"Gosto de ser professor"

“O que os professores pedem, como qualquer trabalhador, é estabilidade nas políticas educativas e respeito pelo seu trabalho. Julgo que não é pedir muito, até porque não foram eles a levar o país à bancarrota”, acrescenta Fátima Gomes. Afirma que “a escola está a ser minada há muito”, que existe um “clima de desgaste e animosidade” alimentado também por “comentadores mal-intencionados”. Adoptou como estratégia ignorá-los, o que lhe tem “permitido manter a sanidade e o bom humor”. Isso e o facto de “gostar realmente de dar aulas e do contacto com os alunos”. “É o que me dá ânimo”, diz.

“As constantes mudanças legislativas, feitas mesmo sem avaliação das medidas adoptadas, dificultam o trabalho de quem está no terreno e consequentemente a obtenção de melhores resultados”, constata Filipe Silva. Mas, apesar de tudo, “do desencanto e alguma frustração”, não tem dúvidas do que é: “Sou professor e gosto de o ser."

Neste Dia Mundial do Professor, Isabel Le Gué recorda que em Portugal existe “uma geração de docentes homeless, porque carregam a casa às costas ano após ano” e faz também questão de deixar “uma palavra de respeito e de apreço para todos aqueles, e são muitos, que dão o seu melhor pelos alunos, mau grado a adversidade das circunstâncias.”  

Por tudo o que tem estado a acontecer, Isabel Le Gué recorda o que disse no discurso de abertura do ano lectivo 2009/2010, quando a então ministra socialista Maria de Lurdes Rodrigues consagrou a divisão dos docentes em dois grupos, um restrito a que chamou titulares, que podiam ascender ao topo da carreira, e a massa dos restantes a quem tal era vedado. Isabel le Gué disse então o seguinte: “Neste ano importa lembrar que há duas categorias de professores: [pausa] os bons e os maus professores. E não tenhamos dúvidas: o primeiro grupo é bem mais numeroso do que o segundo.”     

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