Bichos no zoológico

Um olhar certeiro, inquietante, sobre o Brasil contemporâneo, que se perde num final “de género” despropositado.

O caldeirão de um Brasil dividido, distópico, contemporâneo: <i>Praça Paris</i>
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De um lado, o Rio de Janeiro da favela, do morro, da criminalidade, da gente pequena que vive o melhor que pode com o pouco que tem. Do outro, o Rio de Janeiro da classe média e da elite intelectual, que vive protegida do resto, que tem tempo para pensar mas não pensa realmente nas coisas. De um lado, Glória, que trabalha como ascensorista na universidade e viaja diariamente entre as duas cidades, do outro, Camila, portuguesa a fazer um doutoramento em psicologia, que é a terapeuta de Glória no âmbito de um projecto universitário. Glória vem de um lar abusivo e tem um irmão na prisão, e às tantas diz a Camila: “sou como o bicho do zoológico”, que se visita no seu habitat natural mas sem verdadeiramente pensar no que lhe vai na cabeça. Ponto adicional: Glória é negra, como quase todos os seus vizinhos no morro; Camila é branca, como quase todos os seus colegas e amigos na universidade.

É neste caldeirão de um Brasil dividido, distópico, contemporâneo, que a veterana brasileira Lúcia Murat instala Praça Paris, questionando se é sequer possível construir uma ponte entre estes dois Rios, entre estes dois modos de vida que parecem passar constantemente ao lado um do outro. O filme evoca os mecanismos do thriller paranóico — quando percebe que Glória é irmã de um traficante do morro, Camila cede por inteiro a um medo irracional, não está preparada para lidar com uma realidade que até aí optou por não ver; Glória, por seu lado, não quer ser apenas um “bicho no zoológico” para os “senhores” virem ver, nem arcar com as consequências dos actos do irmão. Quer assumir-se por inteiro como uma mulher independente. Mas é nessa viragem para a paranóia e para o medo que Praça Paris se perde.

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Murat gere muito bem o ritmo crescente de ansiedade, mas parece não ter compreendido que o essencial do seu filme reside na história de Glória, numa performance assombrosa de Grace Passô, e no seu contraste com o quotidiano de Camila, encarnada com inquietação quase felina por Joana de Verona. Daí que a viragem para o thriller nos pareça quase uma excrescência desnecessária; e assim se perde um filme inteligente, de olhar certeiro e angustiante sobre o Brasil dos nossos dias, num final desconcertante, despropositado, que parece sublinhar todos os estereótipos a que Praça Paris soube fugir na hora e meia anterior. É pena.

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