Selma Uamusse reinventa a alma de Moçambique num disco vibrante

Muitas vezes anunciado, o disco de estreia da moçambicana Selma Uamusse chega às lojas após numerosos testes em palco onde, entre salas e festivais, ela tem cativado o público de forma assombrosa. Excelente cantora e performer, Selma tem em Mati o reflexo de todos os seus mundos: o gospel, a música de fusão e a alma moçambicana. Energética mas também contemplativa.

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Daniel rocha

Foi um disco tão esperado quanto suado. Anunciado por várias vezes, aí está o disco de estreia da Selma Uamusse, Mati, com o mesmo título do EP que em 2016 já o prenunciava. Em Novembro desse ano, após um inesquecível concerto de Selma no CCB, escreveu-se no PÚBLICO: “Excelente cantora, espantosa performer, foi talhada para os palcos e é neles que deve ser vista, ouvida e aplaudida como merece. Qualquer disco, por belo que seja, há-de encerrar apenas uma parte da extraordinária bênção que é a sua arte.” E essa parte aqui está, num disco vibrante.

Selma nasceu em Maputo, em 24 de Dezembro de 1981. “Fiz com que a minha mãe passasse o Natal e o Ano Novo no hospital. Enfim, fui a prenda.” Cresceu, em eventos sociais e familiares, com música e dança. “A música começa em casa, principalmente nas reuniões em casa do meu avô, onde toda a gente cantava e dançava.” Mas isso ia muito para lá das tradições. “Os meus pais fazem parte da primeira geração de uma classe média moçambicana que interveio muito no processo pós-independência. A minha mãe fez aulas de alfabetização e trabalhava na rádio, o meu pai estava muito ligado ao teatro, à poesia, portanto estavam muito activos culturalmente.”

Selma lembra-se de ouvir muita música com os pais. “Ouvi música ocidental, desde muito cedo. O meu pai era fã de Pink Floyd, Dire Straits (nós não tínhamos televisão em casa). Puseram-me logo numa escola de música quando era muito pequena, porque perceberam que eu gostava de cantar e que também tinha muita facilidade em decorar textos e letras. Aos 3, 4 anos, eu já era a solista do grupo coral da escola de música da rádio. Por isso a música veio muito cedo, mas não era vista como algo de extraordinário, fazia parte da formação. Como as exposições ou a poesia.”

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Já pronto em 2017, o disco só foi lançado agora por questões de calendário editorial. “Mas pudemos tocá-lo, ganhar a simpatia de um público que não fazia a mínima ideia do que eu iria fazer. Foi muito edificante” Daniel Rocha

O curso de vida dos pais acabou por levá-la até Portugal, aos 6 anos. “A minha mãe formou-se primeiro, como historiadora, e o meu pai, como só tinha uma formação técnica, quis fazer uma formação superior e obteve uma bolsa para ir estudar na RDA, em 1986 [antes da reunificação alemã, após queda do Muro de Berlim, a RDA pertencia ao bloco comunista].” Como a mãe se sentisse sozinha em Moçambique, o pai conseguiu transferir a bolsa para a Universidade do Porto e instalaram-se em Portugal, ele no Porto e a mãe em Lisboa, onde fez um mestrado em estudos africanos. A família reuniu-se finalmente em 1988. “Mas o objectivo deles nunca foi emigrar. Por isso, um bocadinho antes da Expo 98, decidiram voltar a Moçambique.” E Selma foi com eles.

Mas, já com 13 anos, estranhou. “Dizia aos meus pais: consigo adaptar-me, mas não me sinto identificada. E então pedi-lhes se podia voltar para Portugal e fazer o 12.º ano.” E lá conseguiu, porque tinha em Portugal “algumas pessoas amigas” e “uma madrinha”. “Eles deixaram-me vir e comecei a viver sozinha aos 13, 14 anos.” Viveu na zona do Campo Pequeno e estudou “nas escolas adjacentes ao liceu Filipa de Lencastre”, onde viria a ingressar depois, antes de entrar no Instituto Superior Técnico para estudar engenharia. “Foi tudo muito premeditado. Primeiro, eu dizia que nunca queria ser engenheira porque o meu pai era engenheiro. Mas ele estava ligado à metalurgia e eu estudei planeamento urbano em engenharia civil, não tinha nada a ver.”

Sons de Deus e do diabo

Mas voltando à música: “Eu passava a vida a cantar, a gravar coisas da rádio para tirar as letras. Não havia googles nem internet e eu não tinha dinheiro para comprar a Bravo ou a Popcorn, que às vezes traziam letras das canções. Até que, um dia, uma prima em terceiro grau que vivia cá me convidou para uma festa de aniversário. Fui ter com ela (vivia no Feijó), no dia 8 de Setembro de 1999, e no fim da festa houve um senhor que disse que gostava de cantar um pouco e fazer uma oração.” Selma achou aquilo estranho, mas pensou que devia ser um senhor “lá da igreja” que queria fazer uma oração simples, de agradecimento. “Ele começou a cantar e eu achei aquilo tão bonito e tão especial e tão íntimo que me deixei envolver e comecei a improvisar. No fim, ele disse-me: ‘Cantas muito bem! Estou a fazer um coro gospel e gostava de te convidar.’ Expliquei-lhe que não ia à igreja, que não tinha tido uma educação religiosa, embora aos 12 anos tenha sentido um despertar espiritual (disse aos meus pais ‘acho que Deus está a falar comigo’ e eles acharam estranhíssimo, porque não me tinham baptizado nem educado na igreja) que depois acabou em desilusão, porque vi muito show-off e eu estava à procura de algo mais profundo.”

Mas era um coro ecuménico, aberto a todas as pessoas, disse ele. E ela lá foi. “Primeiro estranhei, depois entranhei. Tínhamos ensaios duas vezes por semana, três a quatro horas, muito intensos.” O coro chamava-se Divine e tinha 30 a 40 pessoas. “Éramos muito novinhos, gostávamos muito de cantar e estávamos sempre juntos. Mais do que um grupo de música, tornou-se um grupo de amigos. Era-me impensável faltar aos ensaios porque aquilo tornou-se parte da minha vida.”

Nessa altura, diz Selma, o gospel tornara-se moda. “Havia muitos programas de televisão que, em lugar de terem coristas seminuas a cantarem em playback, passaram a convidar coros gospel para cantarem ao vivo. E recebia-se bem, para fazer televisão. Aquilo começou a tomar uma dimensão profissional e eu trabalhei com o gospel: íamos a igrejas, fazíamos acções de rua, e começámos a ser requisitados para vários programas.” Foi quando o coro já tinha umas 100 vozes, sendo ela a líder do naipe das sopranos, que receberam um convite para gravar. O novo maestro (o outro fora estudar em Londres) disse-lhe: “Tivemos um convite para fazer um disco, eles dizem que é para misturar a música do diabo com a música de Deus, eu acho isso um bocado estranho, chamam-se WrayGunn ou assim.” Selma entusiasmou-se: “Eles são incríveis, são muito giros, aceita!”

E foi assim que nasceu o álbum Eclesiastes 1.11 (2004), onde Selma não gravou porque nessa altura tinha ido de férias para Moçambique. Mas como ela tinha sido a promotora daquela junção, o maestro convidou-a a fazer parte das seis vozes que integravam os concertos de promoção. Que depois passaram a três, acabando ela por ser convidada a integrar os WrayGunn como vocalista.

O Hot e Nina Simone

Foi com os WrayGunn que Selma teve a sua primeira experiência em palcos internacionais. “Lá fora era dez vezes melhor a forma como nos tratavam. E nós tínhamos a responsabilidade de dar tudo em palco, todos tínhamos uma energia própria que resultava naquela explosão. Isso deu-me imensa bagagem e à-vontade, e como não estava a liderar nada estava sempre divertidíssima.”

Depois vieram mais colaborações: Nu Jazz Ensemble, Cacique 97, Sean Riley, Buraka, Rodrigo Leão (com o qual ainda anda em digressão, a par da sua carreira a solo). “Mas senti necessidade de fazer outras coisas, de saber mais de música. E inscrevi-me no Hot Clube, para estudar jazz.” Entretanto criara uma banda, Soul Divers, que fazia versões de Erykah Badu ou Jo Scott, “coisas que gostava imenso de ouvir”. O Hot ajudou-a imenso, diz: “Abriu-me horizontes, mostrou-me como conjugar a voz com o improviso, com as harmonias, fez-me conhecer outros músicos. Foi fundamental, a ida para o Hot.” Esteve lá dois anos e meio e “cresceu” nas aulas de combo.

O projecto a solo de Selma começou a germinar nessa altura. E, a partir de 2012, quando fez os primeiros concertos de homenagem a Nina Simone, foi-o testando em múltiplos palcos. Seis anos depois, Mati condensa a energia vulcânica de Selma em 9 canções que cruzam idiomas: changana e chope, ambos de Moçambique, português e inglês. Cinco são de autoria dela (Lirhandzo, Mati, Mozambique, Hope e Mónica, esta em parceria com Isabel Novella) e as restantes têm autores diversos: Eduardo Durão (Ngono utana vuna), Chico António (Baila Maria) e Maya Angelou (Malian). E há, ainda, uma boa versão de um tema originalmente gravado por Nina Simone e mais tarde regravado por Tina Turner (ainda com Ike), Funkier than a mosquito’s tweeter.

Energia e contemplação

Em 2012 nasceu-lhe a segunda filha (a primeira nascera em 2010) e esse regresso à maternidade foi o empurrão indirecto para o outro “filho”, o disco. Pensou: “Tenho duas filhas, tenho de ter um projecto a solo.” Em fins de 2013 grava uma “primeira experiência” do disco, mas dela virá a utilizar muito pouco, porque quis trabalhar num novo som. “Em 2016 finalmente chegámos ao Jori Collignon [produtor de Mati], que ouviu atentamente todas as minhas dores, todo o material que tínhamos para trás e tirou todas as camadas dispensáveis. Ajudou-me muito.” Já pronto em 2017, o disco acabou por só ser lançado agora pelas (habituais) questões de calendário editorial. “Mas pudemos tocá-lo, ganhar a simpatia de um público que não fazia a mínima ideia do que eu iria fazer. Foi muito edificante.” Alcides Nascimento, cantor e compositor cabo-verdiano que perdeu a audição precocemente, foi fundamental no processo. “Disse-me: ‘Vejo muito potencial naquilo que tu fazes, mas há um Moçambique esquecido. Porque é que não te desafias a levar esse teu lado mais a fundo? Encontra uma honestidade dentro dessa sonoridade e vai atrás dela.’ Deu-me uma ajuda muito grande neste encontro.” A sonoridade de Mati, pulsante e percussiva, assenta em instrumentos tradicionais, como a timbila, a mbira ou o berimbau, mas junta-lhes guitarras eléctricas, sopros, órgão, sintetizadores. Há um lado “muito moçambicano” mas com um envolvimento electrónico. “Os meus amigos moçambicanos gozam comigo e dizem que eu canto changana com sotaque tuga, mas isso para mim é um grande galardão. Já vivo em Portugal há tanto tempo, que teria de ter uma marca daqui.” Mati é, para ela, um título-síntese: “É o reflexo de todos os meus mundos: do gospel, porque é uma música de cariz completamente espiritual no que diz respeito às letras; é uma música de fusão porque tem todos estes lados, da mbira, das mulheres que estão a cantar e da electrónica; e é uma música simples, de gratidão e feita para as outras pessoas. Acaba por fazer muito sentido enquanto título e apresentação daquilo que é a Selma Uamusse, que pode ser muito energética mas às vezes também é contemplativa.”

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