Mastigar e regurgitar meio século de cinema de género

Mandy é uma delirante trip audiovisual que mastiga e regurgita meio século de cinema de género à sombra tutelar do vermelho-sangue de Dario Argento.

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Mandy é uma trip audiovisual, sensorial, que transporta o espectador para um limbo fora do tempo e do espaço
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Profondo Rosso era o título original de um dos mais alucinantes filmes do mestre italiano Dario Argento (entre nós chamou-se O Mistério da Casa Assombrada), tal como o vermelho vivo, o vermelho sangue, o vermelho veludo, rico, era também a cor dominante dos grandes gialli italianos de Bava, Argento, Fulci. Panos Cosmatos quer que nos lembremos desses filmes ao vermos a sua segunda realização, Mandy, mas quer também que nos lembremos de mil outras coisas: dos anos 1980 de Stranger Things, de Conan o Bárbaro, de Hellraiser, de Demoni ou de John Carpenter; da actual nostalgia do cinema de terror de época metamorfoseada pelo novo cinema de terror de autor (Hélène Cattet e Bruno Forzani, Lucile Hadzihalilovic); da heroic fantasy de escritores como Robert S. Howard ou ilustradores como Frank Frazzetta e Roger Dean; das estilizações cinéfilas de Tarantino (tal como ele, Cosmatos apenas coloca o crédito de realizador à cabeça do genérico de fim) ou do surrealismo de Gaspar Noé.

Tudo isto faz pensar, talvez em excesso, no preciosismo espalhafatoso, formalista de Nicolas Winding Refn Mandy poderia ser o novo Drive do thriller de vingança, com um lenhador alucinado por ter perdido o amor da sua vida às mãos da seita assassina de um ex-cantor folk (a Família de Charles Manson vem inevitavelmente ao de cima) a pegar em arco, flecha e machado para os exterminar. O sucesso que o filme tem tido junto da crítica internacional, aliás, remete para aí (no New York Times, Glenn Kenny chamava-lhe “Tarkovski pulp”). Mas (alívio) Cosmatos tem, para já, mais cabeça que Refn. Mandy é uma alucinação formalista, sim, mas está mais do lado de alguém como Jonathan Glazer (Debaixo da Pele) no modo como a história é transfigurada e transformada por uma mise en scène perfeitamente digna desse nome.

A narrativa, em si, é mínima, coisa para um directo-a-video despachado de 80 minutos. Cosmatos, em estrita colaboração com o director de fotografia Benjamin Loeb e a partitura onírica, inquietante de Jóhann Jóhannssón (de quem foi o último trabalho concluído), distende-a por duas horas, num mergulho profundo num onirismo saturado de cores e sons, uma viagem quase sem regresso ao interior da mente de um homem dilacerado pela dor (Nicolas Cage não faz na verdade muito mais do que costuma fazer, mas fá-lo quase em silêncio).

Mandy não faz na verdade muito sentido, mas também não precisa — é uma trip audiovisual, sensorial, que transporta o espectador para um limbo fora do tempo e do espaço. A única coisa que se lhe pede é que aceite embarcar na viagem, e só se o fizer é que Mandy revelará os seus encantos-limite. Gesto formalmente inatacável de um realizador que sabe muito bem o que está a fazer, Mandy não é coisa que se esqueça.

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