A perversa polarização política do Brasil

As eleições presidenciais brasileiras ameaçam transformar-se num referendo sobre o PT ou sobre a ditadura militar

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Bolsonaro emerge nestas eleições como líder de um bloco conservador radical e paladino de um “governo forte” e autoritário Rodolfo Buhrer
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1. As eleições brasileiras estão a tornar-se “muito perigosas”, adverte na revista Época/Globo a americana Monica de Bolle, directora dos estudos latino-americanos na Universidade John Hopkins, de Baltimore. “Está difícil de acreditar num segundo turno que não seja um referendo sobre o PT ou sobre o regime militar.” As sondagens indicam uma dinâmica que dificilmente será invertida: as presidenciais serão um duelo entre Jair Bolsonaro, um ex-capitão na reforma que anuncia uma via autoritária, e Fernando Haddad, antigo prefeito de São Paulo e candidato do PT, apoiado por Lula. Os candidatos “do meio”, que poderiam apelar ao “voto útil”, contra Bolsonaro ou contra Haddad, parecem fora da corrida.

Há dois anos que se repete o mesmo diagnóstico do Brasil: o poder executivo e o legislativo perderam a credibilidade; agudiza-se a polarização da sociedade; a política está suspensa dos tribunais; o Exército é a instituição mais prestigiada.

Dentro de pouco mais de duas semanas, 7 de Outubro, há eleições presidenciais, legislativas e regionais. Longamente esperadas como meio de resolução da crise decorrente da destituição de Dilma Rousseff, estão a introduzir novos factores de “patologia” no sistema político brasileiro: os votos de rejeição serão mais determinantes do que os votos de adesão. Por fim, os observadores dão conta de um clima deletério. “A ‘política de ódios’ se generalizou”, avisou em 2016 o historiador José Murilo de Carvalho.

Os analistas eleitorais recomendam prudência. Há quem diga que muitas decisões de voto apenas serão definitivamente tomadas nos três últimos dias da campanha e que é cedo para falar na segunda volta, a 28 de Outubro, em que o jogo será necessariamente diferente.

2. Durante duas décadas, o mapa político brasileiro esteve polarizado entre o Partido da Social Democracia Brasileira, que elegeu o Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), e o PT, que elegeu Lula (2003-2010) e, depois, Dilma (2011-2016). Desta vez, a polarização estabelece-se de forma muito mais agressiva entre o PT e uma direita autoritária liderada por Bolsonaro, a mais pesada novidade destas eleições. São também os candidatos com maior fidelização dos seus eleitores e, ao mesmo tempo, os que recolhem maiores taxas de rejeição. Os outros concorrentes, embora com menor rejeição, não dão sinais de descolagem nas intenções de voto. Anuncia-se uma final entre “ódios”: a rejeição de Bolsonaro contra a rejeição do PT.

A primeira dúvida sobre Haddad, a transferência dos eleitores de Lula, parece esclarecida. “A estratégia do PT deu certo”, diz à BBC Brasil o politólogo Wanderley Reis. “Levou a candidatura de Lula até ao último dia que era possível. Deixou os eleitores convictos antes de transferir os votos. Além disso, escondeu a vidraça — deu menos tempo para Haddad ser atacado por adversários.”

 O dilema de Haddad está reservado para a segunda volta. Na primeira, para transferir os votos, o PT faz a assimilação: “Lula é Haddad, Haddad é Lula.” Que fará na segunda volta? Conseguirá emancipar-se da sombra do PT? À medida que Haddad sobe nas sondagens, a sua taxa de rejeição cresce também. Quem é rejeitado não é ele, é o partido. Quase metade do eleitorado é hostil ao regresso do PT ao poder. Os esquemas de corrupção e a arrogância no exercício do poder deixaram feridas que os seus inimigos agora exploram. O PT sempre recusou fazer autocrítica.

3. Neste contexto é crucial avaliar a ameaça de Bolsonaro, que fez uma breve carreira militar no fim da ditadura e entrou na política como deputado em 1991. Fez a sua carreira com uma retórica incendiária, elogiando a ditadura ou proclamando que Fernando Henrique Cardoso devia ser fuzilado por ter privatizado empresas estatais. Disse que Pinochet “devia ter matado mais gente”. Ou que “o erro da ditadura [militar brasileira] foi torturar e não matar”. Era uma técnica de captar a atenção e aparecer nas manchetes da imprensa através de provocações e bravatas. Mas, nessa altura, “ele era um marginal e praticamente considerado inofensivo”, recorda o sociólogo Ignacio Cano.

Entretanto, o contexto mudou radicalmente. No plano internacional, faz parte de uma vaga que vai de Donald Trump a Viktor Orbán, do italiano Matteo Salvini ao filipino Rodrigo Duterte. A emergência desta tendência muda tudo. As bravatas passam a ser levadas à letra por uma parte da sociedade. A “direita dura” brasileira nunca teve verdadeira representação política desde o fim da ditadura. Agora, emerge Bolsonaro como líder de um bloco conservador radical e paladino de um “governo forte” e autoritário.

A circunstância transforma a bravata em ameaça e potencia as pulsões autoritárias e repressivas, hoje mais disseminadas na sociedade brasileira. Ele e o seu candidato a vice-presidente, general na reserva Hamilton Mourão, declaram querer uma revisão radical da Constituição, restringindo as liberdades civis. Mourão evocou também a possibilidade de as Forças Armadas fazerem “uma intervenção” se o sistema judicial não puder acabar com a corrupção política.

“No meio de crescentes crimes e contínuas revelações de corrupção, a candidatura de Bolsonaro oferece uma fórmula simples para os eleitores, enquanto atrai poderosos sectores empresariais com promessas de políticas económicas liberais e, acima de tudo, impede o retorno do partido de Lula e de seus planos de um maior papel do Estado na economia”, anota o politólogo Carlos Melo.

Quer isto dizer que não se pode esconder a possibilidade de Bolsonaro vencer. Até há pouco eram os candidatos “menos rejeitados”, como Geraldo Alckmin ou Ciro Gomes, que poderiam recolher o “voto útil” para travar o candidato do PT. Agora, há indícios de que Bolsonaro poderá assumir o papel de dique “anti-Lula”, captando o “voto útil” dos que querem evitar, a todo o custo, o regresso do PT ao poder.

4. Este quadro perverso cria um sentimento de alarme. “Aprendi a nunca subestimar a capacidade de o Brasil se sabotar”, disse um dia Murilo de Carvalho. O último número da Economist é dedicado ao Brasil: “A mais recente ameaça da América Latina.” Depois do atentado contra Bolsonaro, o Le Monde fez um editorial dramático: “Brasil, o naufrágio de uma nação.”

É precipitado anunciar o naufrágio da maior democracia da América Latina. O Brasil, no meio da indescritível confusão que os media nos transmitem, tem reservas de energia. É o que estará em jogo até 28 de Outubro. Mas, em qualquer cenário, os próximos tempos serão tempestuosos.

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