“O que aconteceu com Marielle no centro do Rio de Janeiro é uma rotina na favela”

Mônica Benício: a arquitecta brasileira diz que assassínios como o da sua mulher, a vereadora brasileira Marielle Franco, são "crimes políticos, que envolvem agentes do Estado" que tendem, no Brasil, a não ser investigados ou a ter conclusões pouco correctas.

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Daniel Rocha

Mônica Benício tem passado os últimos meses a viajar para denunciar a falta de respostas sobre a morte da mulher, Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro, assassinada a 14 de Março. Luta contra a impunidade do crime — que considera um assassínio político. Junto ao Miradouro Panorâmico de Monsanto, entre os últimos preparativos do festival Iminente, que termina neste domingo, senta-se ao lado do mural cravado pelo artista Vhils numa das paredes com um retrato de Marielle Franco, uma obra de arte e de activismo político no âmbito do projecto “Brave Walls” da Amnistia Internacional. “Lute como Marielle Franco”, lê-se na T-shirt da arquitecta, que tem tatuado no braço um retrato da esposa. Faz questão de assumir o lugar de viúva. Num momento de crescente conservadorismo no Brasil, acredita que “afirmar essa identidade é importante para que outras lésbicas tenham essa representatividade”.

Esteve esta semana em Genebra, na Comissão de Direitos Humanos da ONU.

Fui pedir à ONU que cobre mais veementemente do Estado brasileiro respostas para o assassínio de Marielle. Para acompanhar as investigações, que correm num silêncio muito preocupante. Percebemos que o sigilo é importante para que o resultado das investigações seja bem concluído, mas esse silêncio do Estado brasileiro é extremamente constrangedor e preocupante, porque nos coloca numa posição em que não conseguimos saber se de facto as investigações estão a andar e se estão a andar de forma adequada. Quando sabemos notícias, são fugas através da imprensa. E nem assim o Estado vem a público para dizer se é verdade ou se é mentira. Esse silêncio é muito preocupante porque sabemos que na história do Brasil assassínios como o de Marielle, que são crimes políticos, que envolvem agentes do Estado, tendem a não ser investigados ou a não terem respostas correctas no final da investigação.

Como era a sua militância antes de tudo isso acontecer?

Sou militante de direitos humanos desde os 17 anos, mas costumo dizer que era uma militância “de chão”. Participava em manifestações, não tinha um papel de protagonismo. Sempre tive articulações com o movimento feminista, com o movimento LGBTI, mas sobretudo com movimentos nas favelas. Era esse tipo de militância. O assassínio de Marielle acabou por me colocar num outro lugar, acabei por me tornar de certa forma porta-voz desses movimentos nos quais já militava. A minha luta hoje não é apenas por justiça para Marielle, mas também para garantir que as lutas da Marielle sejam levadas adiante, que a luta dela tenha continuidade. Uma luta da qual ela se apropriou durante a vida, através também da sua própria história, por ser mulher, negra, favelada, lésbica. É uma luta muito importante na cidade do Rio de Janeiro, e agora estou nesse lugar de dar continuidade a um trabalho que infelizmente ela não conseguiu fazer com a visibilidade que hoje tem. E também para garantir que não aconteçam mais crimes hediondos como o da Marielle.

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Que tipo de apelo tem feito às organizações internacionais?

A pressão internacional é importante para o Estado brasileiro entender que o mundo está a olhar e que a gente vai continuar a exigir respostas. Nessas viagens internacionais, o que tenho solicitado são investigações, acompanhamento internacional, um mecanismo independente para que exista uma investigação imparcial. A Amnistia Internacional faz uma campanha global muito importante, as pessoas podem acompanhá-la para participar das manifestações, tanto nas redes como as manifestações públicas, assinar a petição para dar visibilidade. Porque quanto mais pessoas envolvidas e exigindo justiça, mais a gente aumenta a pressão sobre o Estado brasileiro para responder.

Uma das questões com que Marielle Franco se debatia era a violência policial nas favelas. Como está o Rio de Janeiro hoje? Mudou alguma coisa nos últimos meses?

Não, na verdade as coisa estão, nesse sentido, piores. O estado do Rio de Janeiro está sob uma intervenção federal de carácter militar. Os índices de violência subiram dramaticamente nos seis meses de intervenção. Marielle foi assassinada nesse contexto. Ela seria presidente da comissão relatora que iria acompanhar essa intervenção militar, e 15 dias depois de ser instalada ela foi executada da forma que foi. O que aconteceu com a Marielle no centro da cidade é uma rotina na favela. E temos inúmeros casos, recentemente o assassínio de um menino de 13 anos, o Marcos Vinícius, de uma forma absurda, através de um helicóptero blindado que estava a disparar sobre a favela... Isso é anti-constitucional, até. O Estado brasileiro é muito violento nas favelas, que é onde está a maior parte da população preta, pobre. É esse o perfil de quem o Brasil mata hoje em dia, o jovem negro, favelado.

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Uma mulher negra e lésbica num cargo com esse impacto - a morte de Marielle foi vista como muito simbólica pelos movimentos sociais e pela esquerda. Como é vista a nível nacional?

A execução da Marielle é um recado muito claro do Estado que é controlado por homens brancos, heteronormativos, fundamentalistas, racistas, LGBTfóbicos. O recado é muito claro: não queremos favelados, não queremos mulheres pretas, não queremos LGBT a ocupar esses espaços de poder. Inclusive, acho que o principal erro foi ter achado que essa população, que sempre foi marginalizada e silenciada, se fosse assustar, sentir mais medo, recuar e não querer mais disputar esses espaços.

O que aconteceu foi o contrário...

Exactamente o contrário. O recado foi de extrema violência, mas a própria Marielle dá um recado diferente. No dia 8 de Março ela disse, sem saber ainda a magnitude do que dizia: “Não serei interrompida”. É impressionante ver a quantidade de mulheres negras que se estão a colocar na política, a disputar a política no Brasil hoje. Ver como a sociedade se mobilizou e se comoveu... porque a Marielle representava, na sua história de vida e no próprio corpo, todas as causas que ela defendia. A execução dela atingiu muita gente: a população negra, que mais uma vez se viu como a carne mais barata do mercado, a ser executada da forma que foi; a população LGBTI, que está sempre no protagonismo das páginas de sangue do jornal, com violência; as mulheres, que conhecem a violência muito bem na história do Brasil. Tocou todos num campo pessoal, e o mundo inteiro olhou e disse: “Vocês perderam a mão”. A gente já vive num Estado de barbárie, que a gente luta diariamente para tentar manter o que nos resta de democracia, mas o assassínio da Marielle é um divisor de águas, é um marco onde a sociedade brasileira assume que não sabe mais o que está a fazer.

Na corrida à presidência (as eleições são a 7 de Outubro), que candidatos têm posto essas preocupações, os direitos humanos, na agenda?  

O cenário da política no contexto do Brasil é muito dramático. Nas eleições presidenciais, o candidato que desponta nas sondagens com [maior] intenção de voto [Jair Bolsonaro] é declaradamente um fascista. Há inúmeros relatos, vídeos, declarações públicas, de que ele não respeita as mulheres, que é racista, que é LGBTfóbico. Esse candidato, por exemplo, quer é que o 14 de Março se repita até que a gente tenha uma pureza ariana no Brasil. Isso é muito preocupante. Que sociedade é esta que estamos a viver onde há intenção de votar num candidato que tem um discurso de ódio e de violência declarado? Há outros candidatos, de esquerda, que se alinham mais à política e à linha de pensamento que a Marielle defendia. Um deles é o candidato do Presidente Lula, preso também de forma ilegítima, nessa situação muito complicada. [Fernando Haddad] começa a subir nas sondagens, mas há esse contexto muito frágil. E há outros candidatos de esquerda que defendem as causas da Marielle, inclusive o do partido da Marielle [Guilherme Boulos], mas que ainda nem aparecem nas pesquisas. O cenário é preocupante.

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Independentemente de quem ganhe as eleições, como vai ser lidar com a polarização que existe na sociedade brasileira, onde ainda há uma certa agressividade na forma como as pessoas olham para os problemas das minorias?

A minha esperança é que o legado que a Marielle deixou da política feita com afecto, tenha mostrado que há um outro tipo de política que pode ser feito. Espero que, na eleição, a gente consiga ocupar espaços com algumas dessas pessoas, para construir um novo modelo de política. Porque para mim tem que haver uma reforma estrutural. Não dá mais para tentar consertar o que existe, porque o que existe está muito ruim. Há uns dias as pesquisas mostravam que Bolsonaro iria para a segunda volta e que, disputando com qualquer candidato, perderia. E ele disse que, se perder na segunda volta, é porque haverá fraude. Um discurso absurdo, mas muito preocupante, porque existe um golpe anunciado no discurso dele. Tendo ele aquele discurso de ódio e apoiando a ditadura militar como ele apoia, é muito preocupante ouvir esse discurso e ficar só a ver. O que a gente tem hoje, enquanto defensores de direitos humanos, enquanto esquerda no Brasil, é um processo de muita resistência. Mas que acredito que, construindo com essa política com afecto, a gente consegue fazer a transformação social de facto.

A nível local, surgiram muitas candidatas mulheres negras, LGBT. É só no Rio de Janeiro ou está a acontecer em todo o país?

No estado do Rio certamente com muito mais força, porque há proximidade. Mas foi uma coisa que se repercutiu no Brasil, sobretudo porque o PSOL [Partido Socialismo e Liberdade], o partido do qual Marielle fazia parte, manteve muito essa questão de querer dar visibilidade a essa política feita com afecto. Temos outras candidatas, mulheres negras, a disputar em todos esses campos no Brasil através do partido.

Tem dito em entrevistas que sentiu necessidade de se afirmar como lésbica na sua luta por justiça por Marielle. Como é ser uma viúva lésbica no Brasil?

Receber imediatamente da imprensa o reconhecimento, o título de viúva, foi muito importante para o movimento LGBTI. Isso traz uma legitimidade e um protagonismo para o movimento LGBTI que é importante. Quando digo que afirmar-me é um acto político, é porque o Brasil é hoje o país do mundo que mais mata sua população LGBTI. A Marielle não usou isso como plataforma política na campanha, mas o nosso relacionamento era público. Depois isso vai ganhando cada vez mais visibilidade, e hoje estou em Lisboa e há um mural com a Marielle. Estive recentemente numa favela em Buenos Aires e há um mural com a foto da Marielle. A menina negra da favela de Buenos Aires agora tem uma referência de uma mulher negra, lésbica, favelada, que chegou a um espaço de poder. Que, infelizmente, foi executa da forma que foi, mas que teve uma repercussão mundial de luta, enquanto inspiração. Hoje, com esta visibilidade mundial que tenho, e este lugar de viúva de Marielle, afirmar essa identidade é importante para que outras mulheres lésbicas, que viveram uma história muito difícil no campo pessoal como a gente viveu, tenham essa representatividade, possam acreditar que viver histórias de amor é possível. É difícil? É. Mas é possível. E a gente faz isso com resistência. Infelizmente acho que não consigo ver a mudança [em breve], mas isso também não me desanima de seguir lutando. A construção é longa, não é uma construção para efeito imediato, mas é importante para as futuras gerações, e acho que devemos seguir na luta com isso. Acho que vale a pena.

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O sector conservador reage mal ao que chama de "ideologia de género". Sente-se essa resistência?

Infelizmente, é muito presente no dia-a-dia. A maior bancada hoje dentro da câmara municipal do Rio, por exemplo, é uma bancada fundamentalista, evangélica. Quando a gente não sabe o que é o Estado laico… Falei isso ao prefeito [presidente da câmara], na inauguração da escola Marielle Franco. Disse-lhe: “O senhor não sabe o que é um Estado laico”. As pessoas têm o direito de exercer a sua liberdade de expressão como quiserem, a sua manifestação religiosa. Contanto que não leve isso para dentro da prática do Estado no planeamento de política pública. No Rio de Janeiro isso não acontece. Se os nossos representantes legislam dessa forma, em causa própria,  deixando a sua religião interferir e fazendo as coisas da forma como são feitas hoje no Rio de Janeiro e no Brasil… Até no Senado, quando se vai discutir legalizar o aborto ou não, é muito preocupante. E isso afecta. A legalização do aborto é um bom exemplo para ver como isso é latente na nossa sociedade. Não é levada nem para a discussão, o Estado nem quer discutir.

Há uma ameaça concreta aos direitos das mulheres?

Sempre que há momentos de crise, a primeira retirada de direitos são os das mulheres, não é? É sempre a gente que tem que reagir, é sempre a gente que tem que se preocupar. Mas a gente derrubou o [Eduardo] Cunha, por isso estou super-optimista que vamos derrubar o Bolsonaro também. O movimento feminista na verdade é, de todos os movimentos hoje, o que mais cresce na América Latina. No mundo, como um todo, mas na América Latina com muita força. As mulheres na Argentina tiveram um protagonismo maravilhoso com aquela onda verde pela legalização do aborto. O Brasil inspirou-se nisso e está indo nessa onda também. A gente finalmente começa a entender o que é empatia e o que é solidariedade feminina, e começa a se articular positivamente com isso. Tem sido muito bonito ver essa onda crescer, participar dessa onda, e acho que é uma das coisas que podem mudar. Para mim, a revolução será feminista, ou não será.

Ouça a entrevista:

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