1933, 2018 – Descubra as diferenças. Ou as semelhanças

Na América, a Grande Depressão conduziu ao New Deal. Na Europa, à guerra. Onde nos leva a Grande Recessão? A História pode ensinar-nos alguma coisa.

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Dorothea Lange/Getty Images

O que anda a ler Angela Merkel? O Mundo de Ontem, de Stefan Zweig, revela a imprensa alemã. Por que razão a palavra “Weimar” regressou ao debate político europeu durante os piores anos da crise do euro? Dois factos, aparentemente pouco relevantes e sem relação directa entre si, mas cuja resposta ajuda a compreender a inevitável tentação de comparar a Europa dos anos que mediaram entre as duas “guerras civis” que a devastaram na primeira metade do século XX e os tempos que vivemos hoje, depois de uma crise violenta que se abateu sobre o continente há quase dez anos.

Dez anos separam o crash da bolsa de Nova Iorque, em 1929, do início da II Guerra Mundial. Dez anos nos separam hoje da queda do Lehman Brothers, o acontecimento que inesperadamente desencadeou a implosão do sistema financeiro norte-americano e a Grande Recessão à escala global. Vale a pena olhar para a realidade com as lentes da trágica metade do século XX europeu? Há algum paralelismo histórico que nos ajude a interpretar a ascensão dos movimentos populistas e nacionalistas em demasiados países da União Europeia e que levou Donald Trump até à Casa Branca? Há estudos académicos para sustentar teses diferentes, como sempre acontece. As semelhanças merecem atenção, as diferenças são evidentes.

O mundo de ontem

O Mundo de Ontem – Recordações de um europeu, escrito por Stefan Zweig entre 1940 e 1942 no seu exílio brasileiro, depois de ter abandonado a Alemanha nazi em 1934, nunca deixou de ser livro de cabeceira das elites europeias. As tiragens sobem e descem conforme as circunstâncias. Não foi apenas a chanceler alemã que resolveu relê-lo. “Só em França, este livro de Zweig vendeu 3,2 milhões de cópias desde 2007”, lembrava o diário alemão Handelsblatt em Junho de 2017. O que faz desta obra autobiográfica de um judeu austríaco, nascido em Viena em 1881, um vício? É uma descrição poderosa, ainda que profundamente amargurada, de como ele viu o seu mundo desmoronar-se por duas vezes no tempo da sua vida breve, deixando-o sem pátria, sem raízes, sem cultura, desterrado num país longínquo onde morreu antes de saber da derrota do nazismo. Por que razão a vida dos seus pais e dos seus avós foi, do nascimento à morte, igual, segura, previsível, confortável, num certo sentido banal, durante um século de paz e de prosperidade europeia, e a sua uma constante descida aos infernos, a partir dos píncaros da mais sofisticada cultura? A lição que o livro de Zweig nos transmite é que os povos podem cair no abismo do nacionalismo e da guerra quase sem se darem conta.

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Wall Street, Nova Iorque, por altura do crash bolsista, em 1929 Hulton Archive/Getty Images

O fim da História ou o seu regresso

Zweig não é o único a reflectir sobre esta tragédia humana. Ensaístas, historiadores, escritores deixaram um fascinante legado que ainda hoje nos serve de guião para perceber a Europa desses anos — agora que, de repente, a História voltou a fazer a sua entrada em cena, depois do longo milagre de paz, de democracia, de prosperidade que os europeus ocidentais viveram desde os primeiros anos do pós-guerra, ao ponto de se esquecerem dele.

Durante a primeira década após a unificação alemã e da reunificação do continente, a União Europeia mostrou-se capaz de resistir ao regresso dos velhos fantasmas, integrando os países que ficaram do lado errado da História depois da guerra, criando um modelo de partilha de soberania que foi a inveja do mundo e um Estado social como nenhum outro. A viragem do século mudou tudo. Primeiro com a queda das Torres Gémeas de Nova Iorque, depois com a queda do Lehman Brothers, o maior banco de investimento americano, que George W. Bush não quis resgatar com o dinheiro dos contribuintes, para se arrepender alguns dias depois.

Como sempre, o destino da Europa estava estreitamente ligado ao do seu grande parceiro transatlântico. Em 2004 e 2005, dois grandes atentados terroristas em Madrid e em Londres puseram a nu o fracasso dos seus modelos de integração da imigração, sobretudo islâmica, lançando um intenso debate em torno do multiculturalismo britânico ou do modelo “republicano” francês. Em 2009 e 2010, o impacte brutal da queda de Wall Street atingiu em cheio a Europa, desencadeando uma profunda recessão, seguida de uma crise do euro que chegou a ameaçar directamente a existência da União Europeia.

Foi nessa altura que a República de Weimar fez a sua entrada em cena. Um outro pequeno livro escrito em 1975 por Peter Gay, Weimar Culture, descreve o nascimento e a morte da República de Weimar, criada para cortar com o Império, que escolheu para capital uma pequena cidade da Turíngia, abandonando Berlim, monumental e prussiana . “A estonteante lista dos seus exilados – Albert Einstein, Thomas Mann, Bertolt Brecht, Walter Gropius, George Groz, Wassily Kandinsky (….) – faz-nos cair na tentação de idealizar Weimar, terra de Goethe, como única, centro de uma cultura sem limites, uma verdadeira idade do ouro”, escreve Gay. “Mas reconstruir este ideal sem mácula é trivializar as realizações da Renascença de Weimar. Parte dela resultava da ansiedade, do medo, de um sentimento crescente de condenação. Uma glória precária, uma dança à beira do vulcão. Uma cultura de outsiders, num breve, estonteante e frágil momento.” Uma jovem república, minada desde o nascimento pelas guerras fratricidas entre comunistas e sociais-democratas, que não ouviu a marcha do nacional-socialismo. Ainda hoje, 80 anos depois, os alemães têm horror a um qualquer sinal de inflação, que associam à rápida escalada de Hitler, quando os efeitos do crash de 1929 na Bolsa de Nova Iorque se alastraram à Europa, acelerando a subida desenfreada dos preços e a queda abrupta da actividade económica. No final de 1923, durante o catastrófico período de hiperinflação na República de Weimar, o marco alemão, cujo câmbio com o dólar era de 4,2 para um em 1914, passou para 4,2 biliões de marcos em troca a unidade monetária americana. Em 1932, no ano em que Hitler subiu ao poder por via eleitoral, seis milhões de alemães, um terço da população activa, estavam desempregados. “Antes de 1929, o Partido Nacional-Socialista era uma força política marginal”, com 2,6% dos votos em 1928, recorda o académico Antonis Kiapsis. Em 1930, obtém 18,25% e, em Julho de 1932, 37,2%, vencendo as eleições. Em Janeiro de 1933, Hitler toma posse como chanceler da Alemanha. Seis anos depois teve início a II Guerra. A Itália tinha um regime fascista desde 1922, mas é ao longo dos anos 1930 que partidos extremistas começam a ganhar terreno na Europa, da Roménia à Áustria, passando pela então Checoslováquia ou pela Bélgica, incluindo a Espanha. A Alemanha tornou-se austera desde aí.

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Manifestação de desempregados em Berlim, por volta de 1930. No cartaz pode ler-se: "2 milhões de desempregados; 1,2 milhões para príncipes" Hulton Archive/Getty Images

No início da última década, pela primeira vez desde a fundação, o cenário da desintegração da União Europeia chegou a estar em cima da mesa. A chanceler referiu essa possibilidade muitas vezes, para justificar à sua cedência a uma opinião pública que não queria saber da sorte dos países “gastadores” e “indisciplinados” do Sul, com o medo de contribuir para a ascensão de um partido de extrema-direita no seu país. Hoje a Alternativa para a Alemanha (AfD) é a terceira força política no Bundestag – liderando a oposição à “grande coligação”. Obteve 13% dos votos. Volta a colocar-se agora a questão a que Raymond Aron chamava “síndroma de Weimar”: até que ponto se deve condescender com os partidos nacionalistas? As comparações históricas não são fáceis, mesmo que possam ser úteis. O anti-semitismo existia na República de Weimar? Paul Bookbinder (Universidade de Massachusetts, Boston) pergunta, na sua obra Why Study Weimar Germany?: “Como podem as forças democráticas de uma sociedade combater os preconceitos e os estereótipos que levam ao ódio?” A questão é eterna.

O pior é o custo político

Regressemos ao tempo actual. “Talvez o maior custo da crise não seja económico mas político”, escrevem na Foreign Affairs Manuel Funk (Instituto da Economia Mundial de Kiel), Moritz Schularich (Universidade de Bona) e Christoph Trebesch (também do Instituto de Kiel). Talvez seja “a vaga de populismo que avassalou o mundo na última década, transformando sistemas políticos, fortalecendo extremistas e tornando a governação mais difícil”. “As crises financeiras conduzem habitualmente ao populismo e à polarização, mas a recente vaga populista está a durar mais do que as que se seguiram a anteriores crises – e a provocar mais estragos.” Alguns exemplos a que os autores recorrem. “Os velhos sistemas de dois partidos em França e em Espanha foram varridos. As forças populistas de extrema-direita emergiram das margens, nalguns casos conseguindo grandes vitórias eleitorais.” Estão no governo (ou apoiam o governo) na Áustria, na Itália ou na Finlândia. Já estiveram na Holanda e na Dinamarca. Mas também em Varsóvia, Budapeste ou Bratislava.

Em 2015, estes três autores publicaram informação relativa a 100 crises financeiras e mais de 800 eleições nacionais em 20 democracias, desde 1870. Descobriram que os partidos de extrema-direita são sempre os principais beneficiários dos crashes financeiros. Os votos desviados para esses partidos aumentam em média 30%, as maiorias de governo tendem a estreitar-se e governar torna-se mais difícil, à medida que mais partidos anti-sistema entram nas legislaturas. Estes efeitos verificam-se na sequência de crises financeiras profundas, mas não dos ciclos económicos normais. As razões também são comuns. As pessoas revoltam-se contra as elites. O estudo indica que esta revolta não beneficia a extrema-esquerda. “Nos anos 1930, por exemplo, foi a pequena-burguesia alemã que permitiu a ascensão de Hitler ao poder. Da mesma maneira, a eleição de Donald Trump foi decidida pelas classes médias e as classes trabalhadoras.”

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Líderes de partidos de extrema-direita de vários países da UE durante um encontro em Koblenz, Alemanha, em Janeiro de 2017 WOLFGANG RATTAY/Reuters

Assim, os populistas de direita “estão mais disponíveis para explorar as clivagens culturais e acusar os estrangeiros pelos problemas económicos ou apontar o dedo àqueles que supostamente põem os interesses de uma elite global acima dos dos seus compatriotas”. E porque é que este fenómeno está agora a prolongar-se por demasiado tempo, como defendem autores, em comparação com outras crises? Não apenas porque o choque foi tremendo, mas também porque foi apenas um “de uma série de disrupções ao longo dos últimos dez anos”.

Os ataques terroristas e a vaga de refugiados são os dois acontecimentos que se juntam aos efeitos económicos da crise que, por sua vez, veio acentuar nas sociedades desenvolvidas a estagnação dos rendimentos da classe média, a precariedade do emprego jovem, o aumento das desigualdades, provocados pelo efeito da globalização económica. Tudo isto nos parece familiar. A incógnita é o que se vai passar daqui para a frente.

O New Deal e o Estado social

São também evidentes as diferenças entre o mundo em que vivemos e aquele que existia na Europa e nos EUA quando rebentou a crise de 1929. Contrariando o destino europeu, três anos depois do crash, os EUA elegeram um líder que foi capaz de responder à destruição provocada pela Grande Depressão na sociedade americana. Franklin Roosevelt prometeu um New Deal e cumpriu, lançando as bases do Estado social, que ainda hoje perduram, aliviando progressivamente as tremendas feridas sociais. O seu programa de grandes investimentos para estimular a economia foi de tal ordem que ainda hoje são icónicas as obras construídas (também com o apoio do sector privado) para estimular a economia — do Empire State Building à Ponte de São Francisco.

Hoje, o modelo social europeu continua a garantir um nível de protecção que impediria o drama vivido pelas massas de trabalhadores nos EUA durante a Grande Depressão. “Comparar os anos 1930 com os anos 2000 é uma missão arriscada. Nos 80 anos que passaram entre a Grande Depressão e a Grande Recessão, o mundo mudou. Foram constituídos grandes Estados sociais. A relação entre os mercados financeiros e a economia real mudou e voltou a mudar. Os EUA transformaram-se na suprema potência económica e militar. Na Europa Ocidental, a democracia representativa, ao contrário da situação dessa altura, estava institucionalizada e consolidada”, escreve Johannes Lindvall, da Universidade de Lund (Suécia). Mesmo assim, ele defende que a comparação entre as duas crises mostra um padrão comum. As primeiras eleições pós-crise 1929-33 e 2008-2011 nas 20 democracias que existiam em 1929 (Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Costa Rica, Checoslováquia, Dinamarca, Estónia, França, Alemanha, Grécia, Irlanda, Letónia, Holanda, Nova Zelândia, Noruega, Suécia, Suíça, Reino Unido e EUA) revelam que as repercussões políticas foram muito semelhantes. “Os partidos da direita começaram por ser mais bem sucedidos do que os de esquerda, nas eleições realizadas a seguir ao crash, mas, depois de alguns anos, os partidos de esquerda começaram a recuperar.”

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Fila para o pão em São Francisco, durante o Inverno de 1933 Dorothea Lange/National Archive/Newsmakers

Harold James, historiador britânico de Princeton (EUA), tira conclusões semelhantes sobre os efeitos da crise na esquerda e na direita europeias: “A Economist lembrava que, nas eleições para o Parlamento Europeu de 2009, a esquerda moderada não conseguiu capitalizar uma crise económica criada à medida dos críticos do mercado livre.” Prossegue: “Tony Judt considerava surpreendente que, ‘numa série de eleições europeias que se seguiram ao desmoronar financeiro, os partidos sociais-democratas obtiveram consistentemente maus resultados; apesar do colapso dos mercados, provaram ser incapazes de se erguer à altura das circunstâncias.” Voltando a Lindvall, “a mais importante consequência política da Grande Depressão foi, evidentemente, a ascensão do autoritarismo de direita na Alemanha, Áustria, Europa Central e América Latina”. Carlos Gaspar (investigador do Instituto Português de Relações Internacionais) lembra, no entanto, que não há hoje à disposição dos movimentos anti-sistema duas ideologias totalitárias, prontas a ser usadas, como havia nos anos 1930 na Europa: o comunismo e o fascismo. O fascismo morreu no final da II Guerra com a vitória dos Aliados. O comunismo implodiu em 1989, com o fim da União Soviética. O Ocidente ganhou a Guerra Fria.

G20, em vez de cada um por si

Duas outras diferenças significativas entre as duas crises estão no nível de articulação entre as grandes economias que as instituições internacionais permitiram e também na disposição dos governos para intervir em grande escala nas economias. “A crescente densidade das instituições económicas internacionais permitiu aos governos, na Grande Recessão, ultrapassar alguns obstáculos à acção colectiva, associados à coordenação das políticas económicas”, escreve o académico de Lund. Ao mesmo tempo, os governos da França, Alemanha e Reino Unido “intervieram ainda em maior escala [do que os EUA]”. A Europa, no entanto, não conseguiu compreender imediatamente a dimensão da crise de 2008, encolhendo os ombros a um problema que era “dos americanos”. Sucederam-se as proclamações. “Le laisser-faire c’est fini”, disse Nicolas Sarkozy. Peer Steinbrück, ministro alemão da Economia, anunciou com um certo gosto que se tratava de “um problema americano” que levaria a que os EUA “perdessem o seu estatuto de superpotência do sistema financeiro mundial”. Menos exuberante, o vice-primeiro-ministro chinês lembrou com alguma ironia que “os professores estão com um problema”. A crise “acelerou o movimento lento mas inexorável do fim de um mundo centrado nos EUA, que começou com a queda do Muro de Berlim”, escreve Roger C. Altman na Foreign Affairs logo em Janeiro de 2009, definindo o crash de 2008 como “um recuo geopolítico do Ocidente”. A aceleração da ascensão da China foi o resultado mais visível. Richard Haass previu um mundo “não polar” – anárquico. Muitos autores anunciaram a morte do chamado “consenso de Washington” que inspirava o modelo de desenvolvimento de uma grande maioria de países, substituído pelo “modelo de Pequim”. Algumas destas previsões confirmaram-se, outras foram manifestamente exageradas.

A realidade internacional era também muito diferente. Nos anos 1930, não havia mais do que duas dezenas de países que dominavam a economia mundial. Em 2008, com a globalização económica, as potências emergentes, apesar de severamente atingidas, conseguiram recuperar mais depressa e puxar pela economia mundial, quando o Ocidente caía em recessão profunda. Ao contrário da maioria das previsões, que apontavam para a grande oportunidade chinesa de “estrangular” a economia americana, vendendo dólares e títulos do Tesouro ao desbarato, isso não aconteceu. “Estrangular” os EUA implicava suicídio.

Dez anos depois, algumas dessas previsões mais catastrofistas falharam. A repartição do poder mundial é hoje mais equilibrada, graças sobretudo à emergência da China como a principal candidata a superpotência, desafiando a hegemonia da América. Talvez a questão mais relevante tenha sido a cooperação entre as grandes e médias potências económicas, somando ao G7 (os países desenvolvidos) 13 países emergentes do resto do mundo e travando a tentação do proteccionismo que, nos anos 30, apenas serviu para acentuar a depressão e fomentar o nacionalismo.

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Angela Merkel e Donald Trump na última cimeira do G7, em La Malbaie, Canadá Leon Neal/Getty Images

A primeira reunião do novo G20, que incluía China, Índia, Brasil, África do Sul, Indonésia, Turquia, Arábia Saudita, reuniu-se pela primeira vez em Washington em 2008, por iniciativa de Nicolas Sarkozy e de Gordon Brown. A segunda, em Abril de 2009, já com Barack Obama, foi um marco no consenso entre as maiores economias para travar os efeitos da crise financeira. Houve uma profunda recessão económica, mas não uma Grande Depressão.

Citando de novo Carlos Gaspar, há um outro traço comum, acentuado pela Administração Trump. Tal como nos anos 1930, a potência hegemónica “está a abdicar do seu papel de garante da ordem internacional”, como a França e o Reino Unido abdicaram dele nessa altura — permitindo a invasão da China pelo Japão e a Guerra Civil de Espanha, a antecâmara da II Guerra. A China alarga a sua influência, depois de ter consolidado a economia. A Europa está mais dividida do que nunca. É o seu destino enquanto projecto de integração único no mundo e o mais eficaz antídoto contra o nacionalismo que também está em causa.

A barreira europeia é intransponível?

Muita gente previu a sua morte depois da unificação alemã. É célebre a frase do historiador e académico britânico Tony Judt, escrita em 1997: “A Europa será alemã ou não será.” O jornalista francês François Lenglet, na sua obra de 2008 La Crise des années 30 est devant nous, defende que “a bela ideia europeia é uma fénix que reaparece depois de cada crise internacional e morre imediatamente antes da seguinte”. Cita Paul Valéry para descrever a profunda depressão europeia depois da I Grande Guerra: “Nós, as civilizações, sabemos hoje que somos mortais.” Mas a fénix europeia reaparece em meados dos anos 1920, “quando a economia do continente começa a estabilizar-se e a França e a Alemanha se aproximam, apesar das incessantes chicanas sobre as reparações de guerra”. Reactiva-se a ideia dos “Estados Unidos da Europa”. A França, pela mão de Aristide Briand (chefe do Governo) toma conta dela. A Alemanha aceita-a. “Como sempre, os povos estão preparados para a abertura, quando não têm medo do futuro”, escreve Lenglet. A euforia não durou muito. “Da mesma forma que a euforia económica tinha permitido aos europeus dar início à reconciliação, a entrada em cena da crise e do desemprego restabelecerá as fronteiras nacionais nos espíritos e nos factos.” A França abandona pouco a pouco o seu desejo de Europa. Briand morre alguns meses antes da chegada de Hitler à chancelaria. O governo da Frente Popular liderado por Léon Blum, onde dominam os comunistas, começa bem, mas as greves e a redução do tempo de trabalho de 48 para 40 horas travam a economia.

A Europa voltará a renascer como uma fénix depois da II Guerra. Para integrar a Alemanha, garantir a presença dos EUA e enfrentar a ameaça soviética. Foi construída por duas grandes famílias políticas: a social-democracia e a democracia-cristã. Hoje, a social-democracia atravessa uma profunda crise na maioria dos países europeus. Quase desapareceu em França ou na Grécia. Não criou raízes no Leste. Os seus redutos do Norte, incluindo o SPD alemão, vivem um declínio eleitoral que parece irreversível. O seu derradeiro sobressalto, que a levou ao poder numa maioria de países da UE na década de 1990 — a “terceira via” —, perdeu-se, incluindo no seu país de origem, onde o New Labour de Tony Blair deu lugar ao velho Labour de Jeremy Corbyn. Boa parte dos votos que perdeu foram para os partidos populistas e nacionalistas, animados pelos deserdados da globalização. No centro-direita, a crise é menos visível, mas a hora da verdade aproxima-se: o que fazer perante a ascensão dos partidos xenófobos e antieuropeus, saídos de um facelift que lhes deu uma aparência mais tolerável? Correm o risco de se partir. Ou de se render.

Voltando a Zweig, o que não sabemos é se, de repente, a lenta evolução dos acontecimentos, a que não prestamos demasiada atenção, nos leva inadvertidamente até ao precipício.

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