O casarão

É curioso que, num filme tão cuidado e tão composto visual e sonoramente, é a narrativa a tornar-se “ilustrativa”.

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Em Vazante, Adriano Carvalho tem o papel que os filmes portugueses ainda não lhe tinham dado
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Vazante, de Daniela Thomas (que em Portugal é sobretudo conhecida pelas suas colaborações com Walter Salles, em Terra Estrangeira ou Linha de Passe), move-se por caminhos muito semelhantes aos de Joaquim, embora funcione de maneira bastante diferente e acabe por chegar a resultados um pouco menos estimulantes. Uma legenda inicial situa a acção em 1821, portanto um ano antes da independência brasileira, e estamos também numa zona interior, numa fazenda que é uma espécie de “posto avançado do progresso” e que vive (ou vivia) essencialmente da exploração dos diamantes.

Como em Joaquim, existe a preocupação de fazer um “quadro geral” da estrutura social — há o “português” (Adriano Carvalho, que tem aqui o papel que os filmes portugueses ainda não lhe tinham dado e é impecável num registo “espectral”), há os “brasileiros”, há os “africanos” e correspondente hierarquia (os escravos e os que mandam nos escravos). Num belo enquadramento especialmente “significante”, ainda numa das sequências iniciais (uma longa caravana, filmada “horizontalmente”, um dos momentos do filme em que Thomas parece jogar com a memória iconográfica do western), a realizadora traduz visualmente essa estrutura — o lugar dos escravos é com os bois, porventura até atrás deles. E ainda, como em Joaquim, existe a preocupação de impedir o maniqueísmo, de sobrecarregar as personagens com estereótipos moralistas — é uma “ordem social”, descrita com naturalidade, o que como é evidente não implica nenhuma cumplicidade.

Reconhecendo-se isto, o que corta o voo de Vazante é o desequilíbrio entre a sua capacidade de sugestão visual e a sua agilidade narrativa. Este mundo fantasmagórico, filmado num preto e branco austero que sublinha a austeridade dos próprios décors (aquele casarão muito despido, muito vazio, parece quase “nórdico”, como se fosse a apropriação de um cenário dreyeriano, o que é bastante singular), esta presença duma natureza majestosamente indiferente (e cujos ruídos e rumores se substituem à música que, salvo erro, não existe em momento algum) — tudo isto é mais convicente do que a dramaturgia e do que o movimento narrativo, que se perdem frequentemente em episódios laterais (em entrevistas, Daniela Thomas referiu a procura de uma lógica de folhetim), cortando a força do seu eixo central. Que é a relação, de extremo alheamento, extremo não-reconhecimento, da personagem de Adriano Carvalho, e a extrema violência, também “não reconhecida” (por ele) do seu casamento com uma miúda adolescente. É curioso que, num filme tão cuidado e tão composto visual e sonoramente, é a narrativa a tornar-se “ilustrativa”: ainda bem longe do fim podemos adivinhar o desfecho. Questão de progressão lógica, dirão, e é certo. Mas é provavelmente o que falta a Vazante: um pouco mais de desarranjo, um antídoto para a sensação de se estar a assistir à exposição de uma lógica pré-determinada.

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