“Este é o país de Salvini” e não é para todos

A Itália tem há três meses um Governo de coligação improvável e potencialmente explosivo. Semanas de muita retórica e pouca política. E nenhum político bate Salvini, o favorito de 70% dos italianos.

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Matteo Salvini, o homem que de facto governa a Itália Reuters/ANTONIO PARRINELLO

A Itália é um país muito pouco variado do ponto de vista étnico ou religioso – quase 93% dos seus 60 milhões de habitantes são etnicamente italianos e 75% dizem-se católicos. As minorias são mesmo minoritárias. Mas nunca se tinham sentido tão pouco italianas como nos últimos tempos.

As percepções podem ser diferentes da realidade: por exemplo, segundo as sondagens, os italianos acreditam que há 25% de imigrantes actualmente no país; na verdade, apesar do fluxo de chegadas em 2015 e 2016, são 9%.

Há exactamente três meses, a 1 de Junho, tomou posse um Governo de coligação improvável mas aparentemente possível: o Movimento 5 Estrelas (M5S), formação antipolítica e a mais votada nas eleições de 4 de Março, assinou um pacto de governação com a Liga, o partido que mais votos obteve dentro do bloco da direita (que incluía o partido de Silvio Berlusconi e outras pequenas formações).

O M5S teve 32%, a Liga menos de 19%. Mas depressa se percebeu que quem manda é mesmo o líder do partido que nasceu a desejar a independência do Norte e hoje defende a soberania face a uma União Europeia que diz ter “posto a Itália de joelhos”, a Liga, que Matteo Salvini transformou em força política nacional. Não é primeiro-ministro, mas não é preciso. O palco é todo dele, ministro do Interior e vice-presidente do Governo.

Luigi Di Maio, o jovem secretário-geral do M5S, nem 40 anos tem, o outro vice, é ministro do Desenvolvimento Económico, do Trabalho e Desenvolvimento Social. Para ele, a escolha era só uma: segundo as regras do partido, cada deputado só pode cumprir dois mandatos. Di Maio está no segundo – ou chegava agora ao poder ou não teria segunda oportunidade. Isto num movimento oficializado como partido pouco antes das anteriores legislativas, em 2013, quando deixou a política italiana bloqueada ao obter quase um quarto dos votos recusando alianças com “a velha política”.

Os desiludidos com os partidos mais antigos continuam a escolher o M5S nas sondagens, diz o politólogo Renato Mannheimer. Mesmo com a Liga a subir – está nos 30%, valor absolutamente histórico para o partido; e a formação de Di Maio a descer (tem um pouco menos). A coligação está com uma aprovação de 52%. E nenhum político bate Salvini em popularidade (era quarto nas eleições), sendo o favorito de 70% dos italianos. Os seus seguidores no Facebook, onde é rei, subiram cinco vezes, tendo agora mais de 2,9 milhões.

O resto, particularmente o centro-esquerda, é quase um deserto. A maior força de oposição tem sido a Igreja, principalmente através da revista Famiglia Cristiana: numa das suas capas, em Julho, surge Salvini e a frase “Vade Retro Satanás”.

Para o movimento fundado pelo humorista Beppe Grillo contra o milionário-político Silvio Berlusconi e contra a “casta”, da direita à esquerda, chegar ao poder foi uma decisão difícil. Quase inevitável, face aos resultados. Talvez se venha a provar uma decisão muito errada. É cedo. Certo é que o protagonismo é todo de Salvini e das suas políticas anti-refugiados, anti-imigração, anti-UE.

“A festa acabou”, anunciou quando recusou o desembarque ao primeiro navio repleto de refugiados resgatados do Mediterrâneo, mais de 600 pessoas. Hoje, 42% dos eleitores do M5S aprovam esta política – mas nem todos os políticos do movimento estão de acordo.

O primeiro dia

As eleições decorreram no domingo 4 de Março. No dia seguinte, segunda-feira de manhã, Idy Diene, um vendedor de rua do Senegal, foi morto com seis tiros enquanto trabalhava na ponte Vespucci, em Florença. O homem que disparou chama-se Roberto Pirrone, um italiano de 65 anos que estaria com problemas financeiros e pensara suicidar-se.

Não conseguiu disparar contra si, disse à polícia. Pensou disparar contra alguém mais velho, mas ninguém de mais idade vinha a passar. Viu depois uma mulher com uma criança. A seguir um homem branco. Finalmente, um negro. Disparou.

Esta morte não foi contabilizada como ataque racista. Nada prova que Roberto fosse racista, dizem as autoridades. Mas como notaram comentadores da imprensa e estudiosos do fenómeno, algum motivo levou Roberto a disparar quando viu Idy e não antes.

Até ao fim da primeira semana de Agosto, as associações de luta contra o racismo tinham registado 12 incidentes em que foram disparadas armas (uma criança cigana de um ano foi atingida com uma pressão de ar nas costas), dois assassínios e 33 ataques físicos desde a tomada de posse de Salvini. Números completamente sem precedentes.

Aqui há políticos do M5S, como o deputado Roberto Fico e vários autarcas, que não conseguem seguir o exemplo do líder e permanecer silenciosos. “Todos, a começar pelos políticos, temos a responsabilidade de criar uma barreira, de impedir estes episódios cobardes e inaceitáveis”, afirmou recentemente Vincenzo Spadafora, um dos eleitos do partido.

Algumas das vítimas são italianos de origem senegalesa, nigeriana ou cabo-verdiana. Outros são imigrantes. Em comum têm a cor da pele. Num caso, dois homens perseguiram de carro um marroquino que acreditavam ser um ladrão, acabando por lhe dar um sova e deixá-lo para morrer.

Menos do que nós

“Chegar a matar uma pessoa porque esta pode roubar significa pressupor que isso se pode fazer porque não é igual a nós, porque a consideramos menos do que um ser humano, uma ‘besta’, um ‘inferior’”, afirmou ao jornal La Repubblica Chiara Volpato, professora de Psicologia Social. “É um processo de pensamento comum a todas as formas de violência baseadas no ódio ou no preconceito, na perseguição de um outro enquanto tal: seja gay ou marroquino”.

Em pelo menos dois ataques, os perpetradores gritaram “Salvini”, num em particular foram ouvidos gritos de “Este é o país de Salvini”.

As primeiras vezes

Ninguém contabiliza os ataques verbais, as ofensas, os miúdos assustados nas escolas ou mandados para casa por mães de amigos porque “se portaram mal” quando isso nunca tinha acontecido. Foi o que sucedeu com o filho de Edna Lopes, cabo-verdiana de 41 anos, consultora e cônsul honorária de Cabo Verde em Milão. “Foi a primeira vez. Por estes dias há demasiadas primeiras vezes a acontecerem connosco”, disse Edna ao site Vox.

Semanas antes tinha sido ela a experimentar algo que nunca imaginara. Numa caixa multibanco, começou a ouvir gente atrás de si na fila queixar-se do tempo que estava a demorar. O tom escalou depressa. “Porque é que não vais perder tempo para o teu próprio país”, resmungou um homem de uns 40 anos, T-shirt Lacoste. Edna ficou em silêncio. Seguiram-se mais insultos: “bruta putana negra” (puta negra feia). E o grande final: “Graças a Deus que agora o Salvini vai escolher quem fica e quem vai”.

Em Itália há 25 anos, Edna ficou em lágrimas. Principalmente porque nenhuma das dez pessoas que assistiram falou em sua defesa. “Agora ninguém fala. Começam a ver que os apoiantes da Liga têm demasiado poder.”

“Há uma legitimação indirecta por parte da política, um ‘nós’ contra ‘eles’”, diz Volpato. “Se os representantes das instituições só falam dos imigrantes e dos estrangeiros em termos negativos e alimentam o medo, dizendo que são todos delinquentes, cria-se um espaço no qual as pessoas se sentem legitimadas a dar largas aos seus piores instintos. É como se se abrisse uma porta para as pulsões racistas.”

Até quando?

Salvini diz que “o racismo não existe, foi a esquerda que o inventou”. Ele que prometeu expulsar 500 mil imigrantes durante a campanha. Ele que se gaba a cada navio com requerentes de asilo que impede de atracar nos portos italianos, criando novas crises a uma UE já em dificuldades. Passou pouco tempo.

Face às dificuldades económicas em que encontrou o país, a tentação deste Governo será insistir nas questões identitárias. Salvini propôs uma lei para tornar os crucifixos obrigatórios em todos os espaços públicos (e não só nas escolas, onde já são), e um dos seus ministros, Lorenzo Fontana, com a pasta da Família, anunciou que quer revogar a lei que criminaliza o discurso de ódio, a promoção da discriminação racial e o fascismo. Bastante silencioso em relação aos refugiados e imigrantes, Di Maio rejeitou de imediato esta proposta.

“Interessaram-me muito as políticas ligadas ao território”, afirmou Salvini numa entrevista para uma biografia (Il Militante), dos jornalistas Alessandro Franzi e Alessandro Madron. “Na escola era tudo esquerda vs direita, comunistas e fascistas; o que me interessava era a discussão sobre a identidade, a autonomia, o federalismo e a comunidade.” Os interesses mantêm-se: no populismo há sempre um “nós” contra “eles” – o primeiro “eles” da Liga (que inicialmente se chamava Liga Norte) era a “Roma ladrona”; o actual é Bruxelas e o “outro”, o estrangeiro.

“A imigração é a cola que os mantém unidos”, diz sobre a coligação Flavio Tosi, ex-presidente da câmara da Liga em Verona, citado pelo italiano-americano Alessandro Stille num longo artigo. “Mas se não conseguem enfrentar as questões económicas, os eleitores acabarão por reconhecer isso mesmo – só não sei quando é que isso vai acontecer.”

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