Que viva o México de Alfonso Cuarón!

Que bonito é Roma, memórias da infância deste cineasta mexicano nos anos 1970, neste início da 75.ª edição do Festival de Veneza.

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Roma de Alfonso Cuarón dr
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O mexicano Alfonso Cuarón na rodagem de Roma Carlos Somonte-Netflix

Ainda antes de acabar Gravidade, que abriu em 2013 o Festival de Veneza e que ganharia sete Óscares, entre eles o de Melhor Realizador, o mexicano Alfonso Cuarón prometia a si próprio que o passo seguinte seria mais simples e mais pessoal, mesmo que não pudesse deitar fora a experiência entretanto adquirida, de forma a poder rodar no México, onde não filmava desde E a Tua Mãe Também (2001).

Esse futuro filme “manifestou-se” assim: seria a preto e branco, teria que ver com memórias de infância e teria como personagem principal uma empregada doméstica. Chama-se Cleo, e se se quer saber quem é Cleo, Cuarón revela que é baseada numa personagem que existiu, que foi a mulher que cuidou dele na casa da sua família. E se se quiser saber mais ainda: a casa do filme reconstitui a casa onde Alfonso nasceu, num bairro burguês, Roma, da Cidade do México, 70% dos móveis são originais, as histórias e os gestos também, tinham ficado guardados na memória ou foram convocados; e os actores, mistura de “profissionais” e “amadores”, não tiveram o argumento nas mãos, assim como não teve o production designer Eugenio Caballero (Óscar por O Labirinto do Fauno, de Guillermo del Toro, o presidente do júri da competição), para eles próprios contribuírem para Roma com as suas memórias do México dos anos 1970.

O resultado, em que Cuarón acumula a realização, o argumento, a fotografia e a montagem, foi acabado em 108 dias, mais do que nas produções de Hollywood do cineasta mexicano. Os actores sabiam apenas dia a dia o que ia acontecer às personagens — cada um sabia, portanto, coisas diferentes — e iam também sabendo aos poucos o que as suas personagens significaram para a vida do homem que os estava a dirigir. Um filme sobre a memória, sim, mas sobretudo um filme em que a infância é interceptada e não apenas reconstituída, é olhada agora, com a consciência do adulto, a bolha da subjectividade exposta ao mundo, os gestos a terem outra relevância, a serem lidos de outra maneira. Como se Cuarón, num filme que para ele foi decisivo como “processo”, estivesse a falar com a sua memória e os planos de Roma fossem o registo dessa intercepção.

Por exemplo, os recorrentes travellings com que varre os cenários: dizia o realizador, em conferência de imprensa, que quis dessa forma colocar uma distância na evocação, para que não dominasse a subjectividade, para que o mundo à volta das personagens fosse integrado no plano, para que as personagens pudessem ser recortadas de outra maneira. Por exemplo, Cleo. De origem indígena. De classe social pobre. Não era visível, Cuarón percebeu durante o processo: quando se ama alguém, diz, corre-se o risco de não se ver a pessoa. A verdadeira Cleo, mesmo integrada na família de Cuarón, fazendo parte dela, não era vista por Alfonso. Não tinha consciência da sua invisibilidade social. O filme é então uma forma de a dar a ver, de essa mulher ser personagem, ser pessoa.

É também a forma de Cuarón perceber os homens e as mulheres da sociedade e do tempo em que nasceu, como a mãe, sempre presente e sempre solitária, “como todas as mulheres”, e como o pai, figura em fuga e que às tantas desaparece — é magnífica a sequência em que tentar enfiar o carro grande numa garagem e o automóvel não cabe, os gestos a serem decompostos pela montagem, a totalidade da figura impossível de apreender. Que coisa bonita é Roma, uma produção Netflix, no início da competição da 75.ª edição do Festival de Veneza! Reacção comovida, atira-se já, quando falta ainda tudo, como o Leão de Ouro, o que seria uma primeira vez para a Netflix. Pergunta-se se isso vai ser incómodo para Guillermo del Toro, o presidente do júri amigo de Cuarón.

Ficará como das coisas mais feias da competição, e acreditando que terá concorrência à altura, The  Favourite, de Yorgos Lanthimos, cineasta que, ao contrário de Cuarón, que não filmava há cinco anos, tem aumentado o ritmo produtivo, apresentando o seu terceiro filme em quatro anos, quando noutros tempos precisou de 11 para realizar quatro filmes. Tem aumentado o ritmo produtivo e tem coleccionado prémios, em Cannes e Veneza. Não é de secundarizar, sobretudo perante este novo filme, o primeiro com argumento que não escreveu, os efeitos que isso está a ter no seu cinema. Acontecia já perante o anterior, O Sacrifício de Um Cervo Sagrado, sentir-se o domínio de uma retórica. Dava ar de involuntária paródia ao gesto e, sobretudo, sacrificava o habitual pacto do realizador grego com as suas personagens, figuras que habitualmente pouco se explicam mas cuja abnegação pode ser comovente. Em The  Favourite, o desapego do cineasta perante as personagens é claro, ou não soube interessar-se por elas, e a máquina da paródia é voluntária. Os recursos estilísticos não variam: uma lente para desfigurar. Não há nada de intrigante aqui. Filme de época, passa-se na corte inglesa nos anos de 1702-1707, quando a França e a Inglaterra estão em guerra, e no palácio da rainha Anna (Olivia Colman) duas cortesãs (interpretadas por Emma Stone e Rachel Weisz) disputam o favoritismo real, na sala do trono e na cama.

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