Manuela Tavares: “Pode haver regressão de direitos das mulheres”

Feminista de primeira linha há décadas, a fundadora da UMAR considera que a conquista de espaço e de direitos pelas mulheres “não é irreversível”. Mas acredita que elas resistirão, porque “não são já uma pequena elite consciente”.

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Manuela Tavares é há décadas uma activista feminista de primeira linha Marta Rodriguez

Aos 68 anos, Manuela Tavares continua a aprofundar a reflexão sobre a igualdade entre mulheres e homens e sobre como as mulheres podem conquistar consciência da sua autonomia. Activista feminista de primeira linha há décadas, foi a líder-fundadora da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), nascida em 1976 sob o nome de União de Mulheres Antifascistas e Revolucionárias. Nunca desistiu de lutar pelas causas do feminismo, preocupando-se com o seu enquadramento teórico. Foi isso que a levou a defender, em 2008, o primeiro doutoramento sobre feminismos em Portugal. Hoje é investigadora do Centro Interdisciplinar dos Estudos de Género, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa. Os seus interesses abrangem também a ecologia e desenvolve-os na associação ambientalista Fragas, no lugar de Aveloso, da freguesia de Sul, concelho de São Pedro do Sul, onde o P2 de Verão a entrevistou

Licenciou-se em Economia, em 1974, no actual Instituto Superior de Economia e Gestão. É aí que descobre a política?
De certo modo, sim. Participei nas greves dos anos 1970. Em 1972, estava grávida da minha filha. O António [Tavares], meu marido, trabalhava e estudava. O meu pai ficou doente, com um carcinoma no intestino, e pensámos: “Se tivéssemos um filho ou uma filha, ele ainda via a neta.” Planeámos tudo para que a criança nascesse em Novembro. Mas houve greves em Económicas, a polícia de choque entrou por ali, nem o gabinete do director escapou. Eu estava grávida e escapei porque estava no refeitório, que dava para a Rua Miguel Lupi, fui ver a chegada da polícia com os cães. Fiquei estarrecida e há uma senhora de um prédio em frente que, percebendo que eu estava grávida, me disse: “Menina, venha para aqui!” Atravessou a rua, veio buscar-me e meteu-me no prédio. Vi aqueles patifes a entrar por ali.

É ai que descobre a política?
Já antes, já fazia greves. Não eram politizadas em termos de enquadramento partidário. O pessoal achava que devia fazer greve, eu aderia sempre. E então, nessa greve, os exames são adiados e fi-los a amamentar a minha filha.

Por que razão escolheu Economia?
Tenho origem numa família de fracos recursos económicos. O meu pai achava que se eu tirasse o curso comercial, poderia facilmente ter um emprego no quinto ano, enquanto se fosse para o liceu teria de seguir. Ele não sabia se teria recursos para me manter. É por aí que vou, escola comercial, instituto comercial, e depois Económicas.

Não teve a ver com um interesse pela justiça social?
Não. Depois gostei. Actualmente, não escolheria. Gostava era de História.

Após o 25 de Abril, envolve-se no activismo social e político ao integrar a comissão de moradores do Bairro do Pragal, em Almada, onde morava. Fê-lo já como militante da UDP?
Pertenci a um grupo que era o CMLP [Comité Marxista-Leninista Português], que depois integrou a fundação da UDP. Adiro, próximo do 25 de Abril, porque no Pragal, onde morava, existia um coro, a que pertencia, e quem coordenava era um elemento que vendia o jornal A Verdade, do CMLP, e fez-se a ligação. Depois integro a UDP. Agora, a minha militância no Pragal e na comissão de moradores nem teve a ver com a UDP.

Não é a UDP que a manda fazer uma comissão de moradores?
Não. A comissão de moradores existiu por si. Claro que discutia as questões da comissão de moradores no núcleo da UDP, mas não era uma directiva do partido. Aquilo nasceu das lutas populares a seguir ao 25 de Abril. Depois forma-se uma comissão de mulheres, porque ocupámos um edifício para fazer uma creche. Há então uma reacção muito grande por parte de elementos do PCP a essa comissão de mulheres, porque, na prática, eu estava à frente e era da UDP. E argumentavam que tinha havido o 25 de Abril para homens e mulheres serem iguais, que não tinha jeito existir uma comissão de mulheres por causa da creche. Eu, teoricamente, não sabia dar-lhes resposta e, no plenário, abstive-me.

É a busca dessa resposta que a leva a estar na fundação da UMAR?
De certo modo. A UMAR forma-se em 1976.

Como um corpo da UDP...
Não era bem. Mas deixe-me explicar melhor esta história da comissão de mulheres, porque isto é que me deu a perspectiva de que eram necessárias associações de mulheres. As mulheres que deixaram a comissão e passaram a fazer parte da comissão de moradores deixaram de ir às reuniões. Tínhamos reuniões com 20 e tal mulheres, houve muitas que desistiram, porque não podiam falar como queriam, tinham de obedecer a uma ordem de trabalhos, às vezes os maridos estavam lá e diziam-lhes: “Mais valia teres estado calada.” Há ali, da minha parte, a percepção de que era preciso um espaço para elas falarem, para se sentirem bem. Claro que a Umar é formada a partir da directiva da UDP, lógico. Vou para a Umar porque a UDP achava que devia apoiar. Mas há, da minha parte, um sentir da necessidade de uma associação de mulheres. Isto foi muito importante na minha vida. A ligação às mulheres dos círculos mais desfavorecidos. Eu era professora de liceu e dava também aulas de alfabetização. Se eu tivesse ido para a UMAR apenas por decisão da UDP, não tinha sentido a necessidade de criação da associação.

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Viveu e participou em duas revoluções: uma política, o 25 de Abril, outra social, a da conquista de direitos pelas mulheres. Considera-se de uma geração privilegiada?
Gostaria de ampliar essas revoluções a outras. A minha formação foi marxista-leninista e a minha geração realmente assistiu à esperança na mudança do mundo, com o 25 de Abril. À esperança de que o socialismo era possível e relativamente às mulheres que as mentalidades mudassem e elas pudessem ser pessoas de plenos direitos. Sou de uma geração privilegiada? Por um lado, sim. Mas, por outro lado, sou também de uma geração que sofreu grandes desilusões.

Não se concretizou a esperança do socialismo. A frustração é essa?
A frustração é essa e também perceber que em relação às mudanças para Portugal e para as mulheres tínhamos uma perspectiva de maior aprofundamento. Mesmo as mudanças do 25 de Abril tiveram recuos.

O 25 de Abril não está concretizado?
Houve grandes conquistas. Mas estou a falar na minha perspectiva, que era mais profunda, mais igualitária, não apenas entre homens e mulheres, mas na justiça social. Quando sentimos que as novas gerações são de precariedades, que as mulheres vivem desigualdades salariais, que está tanto por fazer na mudança de mentalidades. Afinal, a grande revolução do 25 de Abril não trouxe tudo o que aspirávamos. Mas que trouxe coisas importantíssimas, trouxe. Isso, não podemos negar.

Nos anos 70 e 80, a defesa dos direitos das mulheres era feita por movimentos feministas, mais ou menos assumidos como tal ou com ligação partidária. Nos anos 90, passou a ser feita pela Estado, chamando-se luta pelos direitos das mulheres. Foi assim porque os movimentos eram fracos ou a União Europeia foi muito forte?
Houve uma grande fragilidade dos movimentos feministas, que tem a ver com todo um passado de 48 anos, uma névoa que fez com que nós, mulheres jovens, chegássemos ao 25 de Abril, eu com 24 anos, e outras mais jovens, sem memória histórica das mulheres da I República. Isso tinha influência na nossa consciência. Mas também o grande isolamento do país do estrangeiro, o pouco reflexo em Portugal dos movimentos feministas dos anos 60 em França e nos EUA. Fez com que nós acabássemos por não conseguir absorver essas experiências. Existia um conjunto de mulheres que tinha conhecimentos, podia ir a França. O Maio de 68 chegou cá muito pouco. Isso viu-se nas próprias lutas estudantis, que estavam fundamentalmente viradas contra o regime, contra a Guerra Colonial. Leu-se Simone Beauvoir, eu já li tardiamente. Nós temos referências no movimento feminista em Portugal, mas essas referências são o MLM [Movimento de Libertação das Mulheres] e as Novas Cartas Portuguesas.

O único movimento verdadeiramente feminista.
Em Portugal, foi o MLM. Que nasce no final do julgamento de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, por causa da publicação das Novas Cartas Portuguesas, em 1972, que terminou em Maio de 1974 com a sua absolvição. O MLM nasce do movimento de solidariedade internacional que o julgamento gerou. Se não tivesse existido aquele livro, nem tínhamos tido feminismo nenhum. É preciso entender isto e digo-o com todo o à-vontade, porque estou na origem da UMAR, que não nasce como associação feminista. Realmente, o MLM – de curta duração, é um facto – foi realmente o movimento feminista. Quando lemos os textos delas, as publicações delas têm semelhanças com os das feministas francesas, até no grafismo. Eu considero que essa é a principal referência em Portugal do feminismo.

Mesmo assim, conseguiram pouco. Apenas influenciaram o então ministro Salgado Zenha para a obtenção do divórcio civil, na revisão da Concordata com a Santa Sé...
Não influenciaram a agenda política na altura senão com o divórcio, mas as ideias estavam lá todas. No primeiro manifesto, está a luta contra a violência sobre as mulheres, o aborto, as sexualidades, estavam lá as principais referências do movimento feminista de segunda vaga.

A UMAR estava ligada à UDP e o Movimento Democrático das Mulheres (MDM) ao PCP, ambos tinham um enquadramento ideológico marxista-leninista, onde a defesa é da luta de classes e não da igualdade. O domínio pelos partidos adiou a autonomização do activismo feminista em Portugal?
Não tenho essa ideia. Embora considere que, tendo a mesma base de concepções, na UDP as coisas foram um bocadinho diferentes, e não estou a dizer isto para defender a UDP. A UMAR sempre teve órgãos próprios eleitos, algumas mulheres que não eram da UDP, até no secretariado. Sempre teve algum espaço. Muitas dessas mulheres não tinham esse enquadramento ideológico. Fazíamos trabalho nos bairros. Acabávamos por não ter a concepção de que, para se fazer algo, tinha de se pedir autorização ao partido. Ganhámos por essa ligação aos sectores populares de mulheres.

Isso no MDM não aconteceu?
Aconteceu, mas muito enquadrado pela CGTP, pelo PCP. Ainda hoje isso se nota. Não quero estar a dizer mal do MDM, continuamos a dar-nos mal em muita coisa [risos], mas até temos feito algum esforço para fazer coisas em unidade. Elas continuam a não ter uma decisão que não seja a direcção do partido que diga que podem. Nós libertamo-nos mais cedo. Mas penso que o problema é a herança do salazarismo e da fraqueza do próprio movimento feminista no início. A concepção do regime anterior sobre as mulheres atinge também as vanguardas pós-25 de Abril que não aceitaram que as contradições de género se entrelaçassem com as de classe. Eram sempre secundárias. Quando tentámos entrar numa manifestação com uma faixa a dizer “Contracepção para não abortar, legalização do aborto para não morrer”, a CGTP não nos deixou entrar.

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O combate à violência doméstica, a paridade eleitoral, a paridade nas empresas públicas e nas cotadas em bolsa foram direitos concedidos mais por influência das orientações políticas da União Europeia?
É uma resposta um pouco difícil, porque os movimentos feministas em Portugal nunca tiveram, a não ser nos últimos anos, um contexto de acção de rua, mais reivindicativo. Lembro que a UMAR reivindicou casas de abrigo para as mulheres vítimas de violência ainda nos anos 90 [do século passado], chegámos a fazer acções no Parlamento. Mas só começámos a sair às ruas a partir dos anos 2000. A ligação que tivemos ao movimento LGBT foi muito importante. Agora, é um facto que a UE, através da legislação, influencia. Mas é preciso dizer que muito daquilo que foi introduzido da UE na nossa legislação podia não ter tido consequência se não tivesse havido alguma exigência, nomeadamente nas casas-abrigo para vítimas de violência e na paridade. Houve influência das organizações no poder político.

A causa feminista que em Portugal juntou a rua, os movimentos, as elites foi a despenalização do aborto. O seu papel nessa luta é conhecido, mas quero fazer-lhe uma pergunta: por que razão, em 1998, procurou a Helena Roseta para fundarem o Movimento Sim pela Tolerância? Porquê ela?
A Helena Roseta já era uma pessoa empenhada socialmente e que tinha um conjunto de ideias mais livres, não tão enquadradas e enquadráveis partidariamente. Era um desafio de uma mulher para outra mulher. Eu, das associações, e uma deputada. Dentro das deputadas existentes no Parlamento, achei que aquela mulher podia dar contributos melhores do que se fosse uma pessoa muito enquadradinha partidariamente. E não foi uma ideia só minha, foi a nível da UMAR: falei com a Ana Sara Brito, a Maria Antónia Palla.

O que pensa hoje do acordo feito, em 1998, entre o primeiro-ministro e líder do PS, António Guterres, e o líder do PSD, Marcelo Rebelo de Sousa, para que, na noite da aprovação da lei na generalidade pelo Parlamento e após essa votação, o líder parlamentar do PS, Francisco Assis, comunicasse ao autor da lei, Sérgio Sousa Pinto, que ela ia ser referendada?
Foi uma desilusão enorme. Não tinha ilusões com o Guterres, mas muitas mulheres feministas dentro do PS tiveram uma desilusão. Na UMAR, lembro-me que fizemos um comunicado a dizer que a rosa “virou” espinhos. Foi realmente uma traição. Nós não lhe chamámos traição, mas foi. Mesmo tendo em consideração – e temos de respeitar – a sua feição católica. Mesmo assim, ele não podia colocar as convicções pessoais acima daquilo que era necessário e exigido. Foi negociado com a revisão constitucional e a regionalização, mas, por mais nobres que fossem essas questões, aquilo era um negócio que não podia ter sido feito.

Nas campanhas pelo “sim”, a linha de argumentação foi, em 1998, a saúde pública e, em 2007, a justiça em relação aos julgamentos das mulheres. Nunca foi usado o argumento do direito ao corpo, que era o princípio feminista de segunda vaga. Porquê?
O Movimento Sim pela Tolerância foi muito difícil de formar, com muita gente com opiniões diferentes, o próprio nome é indicativo de um certo abrandamento da questão. Lembro-me de discutirmos o argumentário e de um dos jovens do PS que lá estavam comentar: “Mas isso pode parecer que é o direito ao corpo, não se pode falar dessa maneira”. Houve realmente um condicionamento do próprio movimento na linguagem. Foi assumido como direito de escolha das mulheres, não como direito ao corpo.

E em 2007 também...
Eu tinha a liberdade de falar. Agora, o que saía cá para fora do movimento tinha sido decidido que era a injustiça face às mulheres por serem julgadas. Era mais abrangente. Era preciso envolver as católicas. Houve sempre, nos dois movimentos, a necessidade de alargar o discurso e as questões de cariz mais feminista ficaram secundarizadas. Mas é preciso dizer que, já em 1979, na Campanha Nacional pelo Aborto e Contracepção [que leva o aborto em 1982 à Assembleia] a palavra de ordem era “Contracepção para não abortar, direito ao aborto para não morrer”. Era já esta visão. O discurso feminista não estava interiorizado verdadeiramente, mesmo nas activistas pelo direito à interrupção voluntária da gravidez.

Durante anos, a UMAR fez denúncia sobre violência doméstica. Como vê o conceito de que o agressor deve ser submetido a prisão preventiva, como existe em Espanha?
As situações de risco em que as mulheres ficam quando fazem as denúncias são muito graves. Portanto, não basta pôr uma pulseira electrónica no agressor.

Há mulheres que têm sido mortas depois de fazerem a queixa...
Muitas, muitas, muitas. A prisão preventiva seria um acto muito importante.

Por que razão essa solução não é discutida em Portugal?
Ainda há muitas ilusões nas questões da mediação. Há associações que tratam das questões da violência e em que a mulher entra por uma porta para ser atendida e o agressor entra pela outra porta. A mesma associação faz terapia a agressores e atendimento a mulheres. Há ilusões de que um agressor possa regenerar-se com programas terapêuticos, umas formações especiais. A ideia de que eles podem vir a ter outra vida porque ganharam outra consciência não dá. Isto são questões de mentalidades inculcadas, em que o agressor tem o poder, quer ter o poder sobre a mulher que é sua propriedade. Recentemente, em São Pedro do Sul, uma mulher fez queixa, foram a tribunal, depois ela recuou em relação à queixa – acontece muitas vezes –, mas ele foi condenado a pagar uma multa, eles têm muito poucos recursos económicos, ele continua a viver em casa com ela, ela é que vai do seu próprio bolso tirar o sustento para o pagamento da multa dele. Como é que isto é possível!?

E os tribunais especializados?
É importante. E é preciso ter outra questão em consideração: nesses tribunais especializados também devem ser vistas as questões dos menores. Ou seja, o tribunal de menores, muitas vezes, funciona de uma maneira e os outros tribunais, que estão a tratar das questões da violência doméstica, de outra. Não há uma integração destas questões. Isto devia ser muito bem visto, porque existirem juízes, homens ou mulheres, que determinam que a criança tem que visitar o pai-agressor e, se a mulher está com o filho numa casa-abrigo, é ela que tem de sair com uma técnica da casa-abrigo e com o filho para irem a um determinado local para a criança ver o pai, quando a criança certamente nem quer ver o pai. Isto traz situações incríveis. Onde é que se vão encontrar? Que protecção é que existe para essa mulher? E para a própria criança?

Para quando o debate sobre prostituição em Portugal? Ao nível político, a JS continua a falar sozinha...
A UMAR tem avançado no envolvimento de mulheres trabalhadoras sexuais nestas temáticas. Precisamos que elas dêem mais a cara e a voz e esse activismo é limitado a meia dúzia delas bem contadas pelos dedos. Mas existem associações como as Irmãs Oblatas [Obra Social das Irmãs Oblatas do Santíssimo Redentor], que têm um trabalho extraordinário, criou-se uma plataforma ao nível da Câmara Municipal de Lisboa, muito polémica porque nem sequer se pode falar em trabalho sexual, mas o diagnóstico está a ser levantado na cidade sobre essa situação. Agora, os partidos políticos, todos eles, têm muito receio de levantarem esta questão da prostituição. Porque é um assunto que divide as próprias feministas. Mas é algo que é incontornável, é um problema de direitos daquelas pessoas, não podem continuar marginalizadas. Na UMAR, não estamos à espera que nos digam quando se deve avançar. Estamos a criar raízes do movimento delas próprias e a ajudar a organizar. É isso que vai calar a boca a todos que falam da prostituição como um fenómeno único.

Há diversas prostituições...
Exactamente. E muitos estão numa posição abolicionista terrível, como se tivessem a verdade dentro deles, com aquelas posições de que as mulheres têm de sair da prostituição, porque é uma indignidade, não é um trabalho. Para além de isso não poder ser atingido, há que respeitar a vontade das pessoas. Claro que as mulheres que querem sair devem de ter condições para sair. Mas as que não querem ou não podem? Cheguei a falar com uma mulher prostituta que me dizia que enquanto a filha estivesse a estudar ela não podia deixar aquela actividade, a filha não sabia, ela até tinha vergonha. Mas é este problema, é esta vergonha, que coloca ainda mais à margem as mulheres que vivem da prostituição.

Outro debate adiado em Portugal é o que diz respeito às mulheres imigrantes. O que deve ser feito?
Na UMAR, foi feito agora um seminário sobre as múltiplas discriminações tendo em consideração que as mulheres não são um sujeito uno, há diversidade nas mulheres, de classe, de origem, de religião, ou seja, parafraseando a Nancy Fraeser e outras autoras que fizeram o manifesto este ano a que chamaram Os Feminismos dos 99% – não concordo muito com a expressão –, mas que dizem que o feminismo tem que ser cada vez mais anti-racista, mais anti-homofóbico, eu direi mais ecologista e mais integrador das mulheres imigrantes. Isto tem a ver também com as perspectivas novas sobre interseccionalidade, que já são velhas noutros países, aqui é que são novas. As mulheres imigrantes em Portugal não têm tido enquadramento nem nas associações feministas nem nas próprias associações de imigrantes. Isto, a meu ver, é grave. Não quer dizer que não existam associações de imigrantes que têm grupos de mulheres, mas os seus direitos como mulheres têm sido muito pouco salvaguardados.

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A individualização ainda não existe...
Exactamente. Os problemas que elas como imigrantes e como mulheres têm, essas questões não são devidamente salvaguardadas. As nossas associações de mulheres ainda são muito brancas e europeias. As mulheres imigrantes têm um papel muito importante até nas próprias famílias, normalmente é a cargo delas que ficam as crianças, nem sempre a família vem para as apoiar. Isto prende-se muito com o problema do trabalho doméstico. Muitas delas são trabalhadoras do serviço doméstico e que direitos têm?

Em Portugal, continua a ser dominante a visão da mulher/mãe, da cuidadora, que vive em função da família e não como sujeito de direitos?
Muito já foi ultrapassado. Não podemos dizer que a ideologia dominante hoje é essa. Até porque as mulheres saíram para o mercado de trabalho, ganharam experiência e não querem abdicar, mesmo que às vezes ganhando muito pouco. Uma delas dizia-me: “Eu nem que seja para comprar uma blusa para mim e não ter de pedir dinheiro ao meu marido”. Já não querem abdicar da sua actividade profissional, porque a ideologia de que elas devem ser apenas mães e boas esposas já não está com elas. Agora as circunstâncias da vida podem empurrar para isso. Estas mulheres todas que saíram da Triumph vão ter subsídio de desemprego até quando? E depois? Elas diziam-me: “Eu vou para casa? Eu estive tantos anos a trabalhar naquela fábrica, habituei-me a ver as minhas colegas todos os dias, a marcar um ponto, a correr para a camioneta, e agora o que vou fazer em casa?”

E muitas vezes, mesmo as activistas, dizem que lutam por direitos das mulheres e não que são feministas...
Agora já dizem um bocadinho mais [risos], já não queima tanto. Uma coisa é lutar pela igualdade, pela paridade, mas ser feminista é muito mais do que isso, é ter uma outra concepção da vida, da mudança, da pessoa como sujeito com direitos, da autonomia intelectual e não só económica. É podermos ter as nossas ideias e discuti-las, podermos ter vidas alternativas. Ora, isso não existe apenas com igualdade formal na lei ou com a paridade. Há muitas ilusões em relação a isso. Claro que é preciso que isso exista, faz parte da evolução. Mas para ser feminista tem que se ter uma concepção da vida diferente em muitos aspectos.

De autonomia?
De autonomia, de vidas alternativas, em relação às questões da ecologia, à educação dos filhos. Cada vez estou mais virada para as questões ecológicas. Estes problemas do interior, da gestão da floresta, das aldeias, da marginalização a que as mulheres são sujeitas nas aldeias. Porque nas aldeias já não existe a mulher com o lencinho na cabeça. Agora, essas mulheres, basta verem televisão, aspiram também a ter direitos. Não têm consciência do feminismo, mas que são marginalizadas, são. Por exemplo, se existe uma situação de violência, onde é que elas vão fazer queixa ou pedir apoio? Quase não há transportes públicos, há um de manhã e outro à noite, se estão numa aldeia. Vão fazer queixa no carro do marido? A falta de mobilidade traz falta de autonomia. A maior preocupação é o caso das jovens. Em algumas aldeias de Viseu, as jovens para estudarem no Politécnico têm de alugar um quarto em Viseu. Como é que têm dinheiro para isso? Qual é a saída para estas jovens? É ir para o estrangeiro. Estou cada vez mais empenhada em que o feminismo não é apenas o urbano, de elites, é de todas as mulheres.

Foi a primeira activista feminista de primeira linha a defender um doutoramento precisamente sobre feminismos, em 2008. Abriu um caminho que tem sido seguido? A universidade portuguesa continua a ser sexista, a ter preconceito para os estudos de género?
Claro que tem, claro. Por estar dentro de um centro de investigação universitário, vejo as dificuldades existentes. A Academia continua a olhar de uma forma marginal os estudos de género. Os estudos da Maria do Mar Pereira foram muito importantes, pois conseguiram mostrar que os estudos de género feministas e sobre as mulheres são um todo que se deve harmonizar. O certo é que há muitas jovens que têm de ir para universidades do estrangeiro. Os estudos de género feministas e sobre as mulheres têm sido impostos por um conjunto de mulheres muito resilientes, mas não é um percurso fácil. E que existe sexismo, existe, é claro que existe. Agora, está como há dez anos? Não. Houve avanços e temos de valorizar esses avanços e ter uma atitude positiva perante eles. Mas não está a andar como deveria andar.

A conquista de direitos e de espaço na sociedade pelas mulheres é irreversível?Não, não é irreversível, pode haver recuos. É uma preocupação que devemos ter sempre presente. Mais do que alguns recuos em algumas leis, como vimos no caso da lei sobre aborto em Espanha, para mim, as maiores preocupações estão nas questões ideológicas e com o avanço da extrema-direita na Europa. É muito preocupante. A contestação que fizeram à Judith Butler no Brasil ou em França, a tentativa de que as questões do género não entrem no secundário em França são recuos. Por isso, pode haver regressão de direitos das mulheres. Agora, há uma coisa em que tenho confiança: é que há mulheres que já não vão deixar que isso aconteça e que não são já uma pequena elite consciente dos seus direitos. Há mulheres que, não sabendo que são feministas, acabam por dizer que há certas coisas em que já não querem voltar atrás, estudar em casa e cuidar dos filhos e dos maridos. Isso, elas já não querem, e é muito importante. Agora, existem diversas formas de influenciar ideologicamente, às vezes de uma forma mais subtil, e isso pode entrar. E temos de estar vigilantes em relação a essas questões.

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