Doentes terminais podem pedir sedação e recusar comida. Mas médicos é que decidem

Nova lei enumera direitos que já existem e reforça-os. Prevista aceitação de sedação paliativa para doentes com semanas ou dias de vida e “sofrimento não controlado”. Amarrar pacientes só deve ser possível em casos excepcionais. Em Portugal há 22 mil testamentos vitais.

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Rui Gaudêncio

Os doentes em fim de vida e com “sofrimento não controlado” têm o direito de receber sedação paliativa e de recusar alimentos, mas a decisão final cabe sempre aos médicos. E só em casos excepcionais é que deve ser possível amarrá-los à cama (a chamada contenção física). Em fase terminal, com dias ou semanas de vida, os doentes e os seus familiares devem ter acesso a informação sobre os diferentes cenários clínicos e os tratamentos disponíveis.

São direitos que já existem mas que agora estão expressos numa só lei, que foi publicada há duas semanas depois de ter sido aprovada em Maio pelo CDS-PP e o PSD na Assembleia da República com a abstenção dos restantes bancadas, numa altura em que o debate sobre a despenalização da eutanásia (que foi chumbada) estava ao rubro.

Intitulada “Direitos das pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida”, a lei agora publicada em Diário da República e já em vigor passou despercebida, lamenta Isabel Galriça Neto, médica e deputada do CDS-PP que é co-autora do diploma e uma das personalidades que mais se empenhou na luta contra a legalização da eutanásia.

Para a deputada que dirige a Unidade de Cuidados Paliativos do Hospital privado da Luz, a relevância deste diploma não decorre apenas do facto de de ser “uma compilação e densificação” dos direitos das pessoas em fim de vida, mas, sobretudo, da circunstância de chamar a atenção para o direito ao recurso à sedação paliativa (fármacos para aliviar sintomas e reduzir o nível de consciência) no caso dos doentes com doença avançada, incurável e irreversível, com prognóstico vital estimado de seis a 12 meses e em sofrimento intolerável. A médica destaca igualmente as regras estritas para a “amarração” dos doentes. 

Este diploma “junta uma série de normas e leis que já existem, reforça e facilita a aplicação desses direitos”, sintetiza a presidente da Comissão Nacional dos Cuidados Paliativos, Edna Gonçalves, que enfatiza também a questão da contenção física, a qual deve ser evitada ou praticada durante o mínimo de tempo possível.

“Esta lei vem agrupar coisas dispersas e reforçar direitos que não estão garantidos em Portugal. É uma chamada de atenção para a sociedade civil e para os profissionais de saúde, até porque há muito más práticas em fim de vida por esse país fora. A obstinação terapêutica continua a acontecer”, acentua Galriça Neto.

De igual forma, acrescenta, “há por aí muita sedação mal feita, há médicos que põem doentes a dormir sem saberem o que estão a fazer”, quando este é um direito que assiste aos doentes, ainda que em situações específicas. Esta é uma prática usada em cerca de 10% dos casos, prescrita sobretudo para garantir que os pacientes não serão deixados numa situação de “sofrimento intolerável e angústia atroz”. Mas com regras, de acordo com a boa prática clínica, enfatiza. “Não é dizer ‘eu quero ser sedado’, mas sim ‘eu não quero estar num sofrimento intolerável’”, explicita, asseverando que tal não implica provocar a morte das pessoas. Quanto ao direito à recusa alimentar, esse também está previsto nos últimos dias de vida nesta lei.

Em Portugal, as pessoas que fazem testamento vital já podem deixar esta vontade expressa, desde que o objectivo seja o de aliviar o sofrimento, mas, apesar do aumento assinalável desde que se começou a falar na legalização da eutanásia, o número destes documentos ainda é pouco significativo (no final de Julho havia 22.082 testamentos vitais, 7610 registados por homens e 14.472 por mulheres).

O acesso à sedação paliativa em Portugal é muito mais limitados do que sucede em França, onde o Parlamento aprovou em 2015 o recurso à sedação profunda. Ali, um doente em fim de vida pode pedir a sedação, que é administrada em casa ou no hospital, enquanto em Portugal a decisão cabe sempre à equipa médica. 

Frisando que “ainda há muito más práticas em fim de vida por esse país fora”, a deputada critica de forma enfática a prática sistemática de contenção física que se faz nalguns hospitais. “Se for a uma urgência sem avisar, vai ver doentes amarrados pelos punhos e pés. Não há razões que justifiquem isto”, diz a médica, lembrando que existe a alternativa da contenção química, que passa por administrar fármacos em doses adequadas.

Na lei também está previsto um conjunto de direitos dos familiares ou cuidadores dos doentes terminais em casa, nomeadamente o direito a receber formação adequada e e apoio estruturado, proporcionados pelo Estado, e os profissionais de saúde devem requerer o direito ao seu descanso sempre que tal se justifique. Os médicos de família têm igualmente a obrigação de sinalizar todos os casos de doentes que não tenham acesso a apoio estruturado.

Mas isso não será pedir demais numa altura em que os cuidados paliativos continuam a ser muito insuficientes em Portugal? “A sociedade civil tem que começar a debater este tema tabu”, desafia a Galriça Neto.

A nova lei explicita que as pessoas em fim de vida têm o direito de receber cuidados paliativos através do SNS, estando englobados neste conceito os apoios espiritual e religioso, caso o doente manifeste essa vontade, tal como o apoio estruturado à família, que se pode prolongar até à fase de luto.

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