Cabo Verde propõe mobilidade na CPLP a diferentes velocidades

Chamam-lhe a "CPLP para os cidadãos", o "futuro da CPLP", a "CPLP concreta e não abstracta". Mas na prática a mobilidade não avançou em 20 anos. Na cimeira do Sal vai tentar-se um novo fôlego. O ministro dos Negócios Estrangeiros português espera a assinatura de uma declaração a "reafirmar a centralidade" da ideia.

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Eurico Monteiro, embaixador de Cabo Verde em Portugal, à porta da embaixada, no Restelo, Lisboa Rita Rodrigues

O Governo de Cabo Verde, que esta terça-feira recebe na ilha do Sal a 12.ª cimeira de chefes de Estado e de Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), vai propor que a organização avance com a mobilidade entre os nove a diferentes velocidades. Há 20 anos que a CPLP sonha com a ideia de uma livre circulação plena, mas hoje até os estudantes têm dificuldade em obter um visto de longa duração num “país-irmão”.

“A mobilidade é um tema transversal a todas as presidências da CPLP, mas continua longe de ser realidade”, diz ao PÚBLICO Eurico Monteiro, antigo ministro da Justiça de Cabo Verde e hoje embaixador em Portugal. “Isso mostra a sua complexidade.”

Para progredir, diz o embaixador do país anfitrião da conferência — na qual participam o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e o primeiro-ministro António Costa —, é necessário uma “alteração de metodologia”. O diplomata resume assim a proposta: “Com realismo e pragmatismo, temos de reconhecer que nem todos os países da CPLP têm as mesmas condições — físicas, institucionais e normativas — para caminhar à mesma velocidade.” Experimentar uma nova “metodologia de abordagem da mobilidade”, diz Eurico Monteiro, “é reconhecer que têm existido dificuldades e constrangimentos — se não reconhecermos isso, daqui a cinco ou dez anos vamos estar a discutir a mesma coisa”.

Basta falar com alguns dos diferentes Estados-membros da CPLP — como o PÚBLICO fez nos últimos dois meses — para perceber que um dos “constrangimentos” é bem prosaico: a organização tem nove membros e parece ter pelo menos oito visões sobre o tema. À pergunta “do que falamos quando falamos de mobilidade na CPLP?” ouvem-se coisas muito diferentes.

Quando chega o futuro?

“A mobilidade é o futuro da CPLP e São Tomé e Príncipe está um bocadinho à frente — estamos mais além”, disse ao PÚBLICO Esterline Gonçalves Género, director do gabinete da CPLP do Ministério dos Negócios Estrangeiros são-tomense, após uma reunião técnica sobre a mobilidade, na Primavera, em Lisboa. “Temos isenção de vistos para todos os cidadãos da CPLP por 15 dias”, diz o diplomata. “Se conseguíssemos isso nos nove, teríamos mobilidade em pleno.”

A Guiné Equatorial não parece ficar impressionada. “A motivação de São Tomé e Príncipe é económica, não é a livre circulação”, diz o embaixador da Guiné Equatorial em Portugal, Tito Mba Ada, numa conversa com o PÚBLICO, uns dias mais tarde. “A mobilidade é um tema muito difícil, em especial para a Guiné Equatorial”, acrescenta o diplomata. “Muito diferente também de Cabo Verde, porque temos que fazer um controlo triplo: temos o Gabão a sul, o Congo a leste, os Camarões a norte, que por sua vez têm fronteira terrestre com a Nigéria, o Chade e a República Centro Africana; e ainda temos São Tomé e Príncipe na fronteira por mar.”

Foi nesta conversa que o diplomata se queixou das “dificuldade em obter vistos para Portugal” que cidadãos guinéu-equatorianos enfrentam desde que o país foi aceite como membro efectivo da CPLP, há quatro anos. “E isso tem consequências”, diz Tito Mba Ada. “Empresários que queriam vir para cá, vão investir para o Dubai e para a China, e os devotos católicos que queriam vir a Fátima vão para Roma quando percebem que têm que ir fisicamente a São Tomé e Príncipe pôr o dedo na tinta para pedir o visto de entrada em Portugal e que, quando o obtêm, recebem vistos de cinco dias. Desistem. Cinco dias não dão para ir a Fátima, ver as 80 igrejas de Braga e ir ao Centro Comercial Colombo!”, queixa-se o embaixador. “O serviço consular de Portugal na Guiné Equatorial não funciona. Estamos a promover a ideia do turismo e de negócios com Portugal, mas Portugal não dá vistos.”

Separadamente, numa entrevista na sede da CPLP, Eduardo Minang Enzema, general da Brigada de Polícia no Ministério de Segurança Nacional guinéu-equatoriano, que também esteve em Lisboa para negociar a mobilidade na reunião técnica de Abril, disse ao PÚBLICO que Malabo “tem consciência de que, sendo membro da União Europeia, é provável que a mobilidade na CPLP levante obstáculos a Portugal”. Em espanhol, o general Enzema interroga: “Será que a União Europeia vai permitir que Portugal avance para a livre circulação no espaço CPLP? Essa é a nossa preocupação. Ao nosso nível, em África, penso que não haverá dificuldades. Mas poderá haver uma pequena dificuldade por causa de Portugal.” Ninguém fala do receio de um brain-drain, ou seja, a perda de quadros que um regime totalmente livre de mobilidade possa representar.

Portugal emite 270 mil vistos

A ideia de Portugal representar um colete-de-forças por ser membro da União Europeia e estar condicionado pelas regras definidas pelo acordo de Schengen é aliás referida por vários países como a principal causa da dificuldade em avançar-se nesta matéria, incluindo as diplomacias de Angola, Brasil e Guiné-Bissau. Bacar Sanhá, da embaixada da guineense junto da CPLP, diz que é necessário “mais abertura: hoje, mesmo os acordos bilaterais sobre mobilidade funcionam a meio gás, até é difícil para os estudantes. Ainda no ano passado, dezenas de estudantes que tinham acesso directo ao ensino superior em Portugal no âmbito do acordo de cooperação bilateral ficaram em Bissau, por não terem conseguido vistos. Infelizmente, esbarrou na embaixada de Portugal em Bissau.”

É um equívoco pensar em Schengen quando se fala de mobilidade na CPLP, responde o chefe da diplomacia portuguesa, Augusto Santos Silva, no seu gabinete no Ministério dos Negócios Estrangeiros, dias antes de partir para o Sal. “Um equívoco persistente. Não estamos a falar de vistos, estamos a falar de autorizações de residência. O nosso regime de vistos é o regime europeu, mas na mobilidade na CPLP não estamos a falar de estadas inferiores a 90 dias, mas sim de as pessoas terem ou não autorização para residência de um longo período de tempo, para estudar, para trabalhar ou para residir.”

Em 2017, “Portugal emitiu mais de 250 mil vistos”, disse um assessor do gabinete do secretário de Estado das Comunidades Portuguesas em resposta às críticas específicas de Malabo e Bissau, notando que o número representa um crescimento na atribuição de vistos. “Entre as dez nacionalidades para as quais foram emitidos mais vistos, contam-se as de cinco países da CPLP — Angola, Cabo Verde, Brasil, Moçambique e Guiné-Bissau”.

A Secretaria de Estado das Comunidades sublinha que “Portugal é defensor de medidas de promoção da mobilidade dos cidadãos no espaço da CPLP” e que, do ponto de vista da modernização administrativa, tem dados passos nesse sentido. Dá um exemplo: hoje há 73 postos consulares portugueses que permitem o preenchimento dos pedidos de vistos na internet. “Mas os serviços consulares estão comprometidos com as regras definidas na legislação relativa à atribuição de vistos, tanto para o território nacional, como para o espaço europeu” e, por isso, “os postos consulares observam escrupulosamente a legislação, respeitando também os prazos para atribuição dos vistos.”

O ministro Santos Silva espera que da cimeira do Sal saia uma “declaração a reafirmar a centralidade da mobilidade e o empenhamento de todos em implementá-la”, mas avisa que “vai demorar ainda mais algum tempo”. Portugal concorda com a proposta cabo-verdiana de experimentar a mobilidade em diferentes velocidades e acredita que as duas áreas em que mais depressa se pode avançar são a mobilidade académica, de estudantes e de professores, e a mobilidade de empreendedores e profissionais.

Ouvidos diplomatas, políticos, técnicos, observadores e analistas, há uma coisa em que todos parecem concordar: estamos a falar do futuro da CPLP. Como a professora Magnólia Dias, professora de Política Internacional Africana na Universidade Nova de Lisboa e investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais: “A mobilidade é uma iniciativa de louvar e é a visão última dos fundadores da CPLP”, diz a especialista. “Vai contribuir para aumentar o sentimento de pertença. Torna a CPLP relevante. Não é aquela ideia abstracta da lusofonia com base no património da língua comum. É dizer às pessoas para o que é que a CPLP serve. Não é celebrar a vitória da selecção portuguesa nas ruas de Díli. É ter impacto no dia-a-dia dos cidadãos. Os nossos cidadãos têm de sentir a CPLP. Devem ver a CPLP como algo onde estão efectivamente dentro, não uma coisa onde estão os políticos. Quando a mobilidade chegar aos nossos concidadãos e eles puderem ver a mobilidade em pleno, aí estamos no futuro da CPLP.”

Francisco Ribeiro Telles, actual embaixador em Roma e um respeitado veterano da diplomacia portuguesa que esteve colocado em Cabo Verde, Angola e no Brasil, deverá ser eleito para o cargo de secretário-executivo da organização, sucedendo à são-tomense Maria do Carmo Silveira.

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