Não fosse o caos financeiro e Santa Maria teria dinheiro para tratar mais 30 mil doentes de hepatite C

Em falência técnica, hospitais de Santa Maria e Pulido Valente não conseguem operar doentes oncológicos a tempo e horas, desaproveitando salas de cirurgia. Tribunal de Contas comparou centro hospitalar de Lisboa com congénere do Porto, que recebe menos dinheiro e faz mais.

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Hospitais de Lisboa analisados pelo Tribunal de Contas têm desempenho pior do que congéneres do Porto Bruno Lisita / Arquivo

O descontrolo das finanças do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, dava para pagar o tratamento de 30 mil doentes com hepatite C entre 2014 e 2016. Quem o diz é o Tribunal de Contas, na mais recente auditoria na área da saúde.

Foi em Fevereiro de 2015 que José Carlos Saldanha interrompeu uma comissão parlamentar da Saúde para pedir ao então ministro Paulo Macedo que não o deixasse morrer: ainda não estava disponível para todos os doentes em Portugal o novo medicamento para a doença. Dias depois o governante anunciava ter chegado a um acordo com o laboratório que o produzia, apesar do impacto que isso iria ter nas finanças do Serviço Nacional de Saúde.

Um impacto de dimensões, porém, inferiores às do descalabro financeiro detectado pelos juízes do Tribunal de Contas no Centro Hospitalar de Lisboa Norte, formado pelas unidades de Santa Maria e Pulido Valente. Divulgada nesta terça-feira, a auditoria compara este agregado, que serve uma população superior a 300 mil pessoas, com outra estrutura de proporções idênticas mas situada no Porto, o Centro Hospitalar de São João. O desempenho da unidade de saúde nortenha bate aos pontos o congénere lisboeta, que se encontra em situação de falência técnica.

O relatório do Tribunal de Contas é demolidor para os hospitais de Santa Maria e Pulido Valente. Apesar de terem recebido mais 213 milhões do que o congénere do Porto no triénio em análise, parte substancial desse dinheiro (19%) “não teve contrapartida em cuidados de saúde prestados, servindo para financiar as ineficiências relativas do centro hospitalar na produção de cuidados de saúde, face à média, e a fazer face ao contínuo crescimento das dívidas a fornecedores”.

Em média, e independentemente da patologia, cada doente tratado em Lisboa sai bem mais caro do que se fosse tratado no Porto. Os juízes lançam mão de um exercício aritmético simples: “Se o centro hospitalar Lisboa Norte alcançasse custos por doente padrão iguais aos do centro hospitalar de São João teria obtido, no triénio, uma poupança 211 milhões de euros –  87 milhões em 2014, 77 em 2015 e 47 milhões em 2016”.  Valores que são “suficientes para o Estado financiar, aos preços actualmente praticados, a realização três milhões de consultas externas ou o tratamento de 30 mil utentes com hepatite C” .

Como foi possível chegar a esta situação? As explicações divergem, consoante venham da administração das unidades de saúde ou do tribunal. Os responsáveis pelo centro hospitalar de Lisboa Norte falam de um subfinanciamento a que são “cronicamente ‘condenados’” nos sucessivos orçamentos do Estado, o que obriga o Governo a injectar dinheiro várias vezes ao ano. Um cenário ao qual os juízes acrescentam outras cambiantes.

Os números são avassaladores: entre Dezembro de 2016 e Novembro de 2017, a dívida do centro hospitalar Lisboa Norte cresceu ao ritmo de quase sete milhões de euros por mês, “denotando que os esforços para a recuperação económico-financeira, através de financiamento extraordinário, não estão a obter os resultados esperados”. Um dos principais credores é o Instituto Português do Sangue e Transplantação, que se vê no papel de financiador involuntário das actividades do Santa Maria e do Pulido Valente. Para piorar a situação, as dívidas contraídas junto deste organismo “têm sido ocultadas pelo centro hospitalar no reporte à Administração Central do Sistema de Saúde”.

Papa não foi bom para a saúde

Ao mesmo tempo que exorta os ministros da Saúde e das Finanças a dotarem o Santa Maria e o Pulido Valente de financiamento adequado às necessidades efectivas da população, o Tribunal de Contas questiona a razão pela qual não têm sido feitas mais cirurgias em Lisboa. “O centro hospitalar de São João efectuou, ao longo destes três anos, mais 74% cirurgias do que o centro hospitalar Lisboa Norte”, refere a auditoria. Para o que contribuíram as operações realizadas fora do horário normal de trabalho, com remuneração adicional para os profissionais que nelas participaram – “o que potenciou o maior aproveitamento das instalações e do equipamento do centro hospitalar”.

O presidente do conselho de administração de Santa Maria e do Pulido Valente alega que a falta de anestesistas, enfermeiros e assistentes operacionais “tem conduzido ao encerramento de salas, impedindo a realização de mais actividade cirúrgica.” Já o homólogo do Porto, que além do São João governa o hospital de Nossa Senhora da Conceição (valongo), revela que apesar dos bons resultados – garantidos em parte com operações efectuadas também aos fins-de-semana –, tanto os protestos laborais como as manifestações religiosas o impediram de apresentar melhor desempenho em 2017: “As greves dos médicos ocorridas em Maio, Outubro e Novembro implicaram uma ‘perda’ de actividade de cerca de 5000 consultas”, enquanto a tolerância de ponto concedida em Maio, por ocasião da visita do Papa Francisco, “também se traduziu numa quebra de actividade de consulta externa na ordem das 2000 consultas.”

Tanto em Lisboa como no Porto há muitos profissionais de saúde a acumular as funções que exercem nestes hospitais com empregos noutros lados, por norma no sector privado. Na capital, 63% dos trabalhadores fazem-no, enquanto no Norte essa parcela sobe para 86%.

Apesar dos maus resultados gerais do Santa Maria e do Pulido Valente, nem tudo é negativo: no que respeita aos tempos de espera dos utentes, o centro hospitalar de Lisboa Norte vence o congénere nalguns parâmetros. É verdade que os utentes do São João esperaram, em média, menos 28 dias pelas cirurgias e menos oito dias pelas consultas médicas, mas no que respeita ao atendimento no serviço de urgência os dois hospitais de Lisboa apresentaram menos demoras: uma hora e quatro minutos de tempo médio de espera em 2016, contra uma hora e 21 minutos no Norte.

No que respeita às operações com indicador oncológico, os doentes de São João voltam a ter vantagem: é no centro hospitalar de Lisboa Norte que se registaram os maiores atrasos, com 18% de incumprimento dos tempos máximos nas operações urgentes e 11% nas muito urgentes em 2016. “A análise do cumprimento dos tempos de espera por prioridade e por tipo de cirurgia, sem e com indicador oncológico, revela que existe um maior incumprimento nos utentes com problemas do foro oncológico, sendo certo que os prazos são, nestes casos, mais exigentes”, assinala o Tribunal de Contas.

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